O avião Convair era um recordista de quedas, daí a forma jocosa como era conhecido; “convém não ir”. Mas naqueles idos de 1963, quando o regime presidencialista já tinha sido restabelecido, um jovem de 22 anos resolveu arriscar. Embarcou, no Rio de Janeiro, num Convair bimotor a pistão da Varig, com destino a Belo Horizonte. Por coincidência, arriscava no mesmo vôo o então ministro da Fazenda San Tiago Dantas. Os dois iniciam um diálogo. O ministro já conhecia o então presidente da União Nacional dos Estudantes, José Serra, a quem expôs exaustivamente sua avaliação sobre a instabilidade política, a inflação e a necessidade de uma aliança entre o centro e a esquerda para enfrentar a crise, com concessões dos dois lados.
Quem quiser saber a aventura deste vôo, e o quanto San Thiago Dantas era um pregador no deserto naqueles meses antecedentes à deposição do presidente João Goulart, precisa ler Cinquenta anos Esta Noite – O Golpe, a Ditadura e o Exílio.
O novo livro de José Serra tem edição bem cuidada pela Editora Record e nos faz mergulhar no tempo, levando-nos até os dramáticos meses do final do governo João Goulart e ao golpe militar de 1964. Ainda nos faz relembrar os brasileiros que, como ele e o irmão de Henfil, partiram para o exílio em um rabo de foguete, para utilizar um verso do hino da anistia, “O Bêbado e o Equilibrista”. Também nos leva ao Chile de Allende onde o sonho da construção do socialismo pela via democrática foi interrompido de forma cruel por uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina, a de Augusto Pinochet.
Cinquenta Anos Esta Noite, que teve concorrida noite de lançamento em 24/6 na Livraria Cultura da Avenida Paulista, não é apenas o depoimento de quem acompanhou episódios tão marcantes em nosso país e em “Nuestra América”. É também a trajetória de um protagonista da história que nela entrou por caminhos não tortuosos.
Marcado para morrer
As boas surpresas do livro começam com um texto de autoria de Ferreira Gullar. Os dois se conhecem desde os tempos em que Serra era presidente de uma UNE extremamente representativa e o poeta, aos 33 anos, era presidente do Centro Popular de Cultura. Os dois sentiram na boca o gosto amargo do golpe de 1964. Voltariam a se encontrar no Chile de antes da pinochetada de 1973.
Falam ainda mais alto os episódios dos quais Serra foi testemunha e agente da história. É marcante a narrativa de uma reunião realizada no domingo 6 de outubro de 1963, na qual estavam João Goulart (Jango), José Serra, Leonel Brizola, então presidente da Frente de Mobilização Popular, Demístocles Batista (o Batistinha), líder dos ferroviários e da direção do Comando Geral dos Trabalhadores, entre outros.
O episódio é ilustrativo do quanto faltou um compromisso claro da Frente de Mobilização Popular com a defesa da legalidade constitucional, das instituições democráticas. O golpe se avizinhava, mas o “campo popular” elegia como foco o combate à “conciliação do governo” João Goulart.
Dez anos depois, a atitude de subestimar o adversário e fazer uma leitura cor-de-rosa da realidade também cobrou seu preço no Chile, como fica claro na seguinte passagem de Cinquenta anos Esta Noite:
– Estive hoje com Volodia Teitelboim e ele me disse que o general Prats se demitiu. Foi substituído pelo chefe do Estado Maior…
– O general Pinochet?
– Ele mesmo. O Volodia considera que isso fortalecerá o governo, que afastará o risco do golpe. Disse que o Pinochet é legalista e que Prats estava desgastado.
A conversa era sobre a situação chilena. A cidade, Moscou. O dia, 24 de agosto de 1973. Na poltrona, Luís Carlos Prestes, o septuagenário líder do Partido Comunista Brasileiro. Na cadeira em frente, eu, um economista de 31 anos exilado em Santiago. Numa viagem a convite da Federação Mundial da Juventude, controlada pelo Partido Comunista da URSS, fui conhecê-lo no apartamento em que morava, no centro de Moscou. Volodia Teitelboim, a quem ele se referira, era senador e dirigente do Partido Comunista do Chile. Não tive dúvida, a despeito do que falara Prestes: o golpe era uma questão de dias.
Há muito, mas muito mesmo para contar de uma trajetória de 50 anos. Da sua leitura do livro Imperialismo Etapa Superior do Capitalismo, de Lenin, de sua polêmica sobre o foquismo com Paulo Wright, dirigente nacional da organização Ação Popular, da qual Serra foi um dos fundadores e militante. De seu artigo escrito em parceria com Maria de Conceição Tavares – “Além da Estagnação” –, um clássico do pensamento cepalino (da Comissão Econômica para a América Latina) e de ruptura com a concepção dogmática segundo a qual a estagnação do Brasil era estrutural e a alternativa era ditadura ou socialismo. Sem falar de sua passagem clandestina no Brasil em 1965, quando só não foi preso pela ditadura porque seus amigos e dirigentes da AP, Sérgio Motta e Egídio Bianchi, o impediram de ir a uma reunião que acontecia no Sedes Sapientae.
Por uma questão de espaço nos limitemos aos dramáticos dias pós-11 de setembro de 1973, quando o ditador Augusto Pinochet interrompeu o sonho acalentado por Allende de construir o “socialismo com empanada e vinho”. Como agiu Serra naquele tempo cruel, quando “choveu em Santiago”?
– Organizei uma lista de exilados brasileiros que deveríamos levar de imediato à Embaixada do Panamá, com a ajuda do Paulo Renato de Souza. Um dos primeiros era Marco Aurélio Garcia, gaúcho, que conhecia desde os tempos da UNE. Pedi ao Paulo Renato que o levasse ao asilo. Em poucos dias, a pequena Embaixada abrigava mais de cem pessoas, a maioria brasileiros. Aproveitando que meu carro tinha placa diplomática, levei comida para lá várias vezes, passando-a pelas janelas.”
Mal sabia ele que quando iria sair do Chile com sua companheira Mônica e filhos seria preso no aeroporto e depois encaminhado para o Estádio Nacional. A pressão do embaixador italiano levou Serra a ser solto. Ficou exilado na embaixada da Itália por quase oito meses, para poder sair do Chile. Agora vem outro episódio revelador no capítulo quase final do livro:
– Dois dias depois, o major Iván Lavanderos, que me soltara (do Estádio Nacional), foi assassinado com um tiro no rosto, a ponta do revólver encostada no seu lábio superior. O embaixador sueco, Harald Edelstam, disse-me que o major fora assassinado por proteger “inimigos” do Chile. Acrescentou que eu tinha sido marcado para morrer, e que devia minha vida a Lavanderos. No dia seguinte à minha soltura, o major entregara-lhe dezenas de prisioneiros uruguaios e bolivianos, levados à Embaixada sueca.
Palavras do poeta
Para os amantes da política e da boa literatura Cinquenta anos Esta Noite tem passagens eletrizantes como essa e, em alguns momentos, é um verdadeiro thriller. Na passarela de suas 266 páginas divididas em dez capítulos desfilam personalidades como João Goulart, Salvador Allende, general Carlos Prats, Luiz Carlos Prestes, Regis Debray, Juscelino Kubistchek, Louis Althusser, Raul Prebisch, Almino Afonso, Enzo Falleto, Vinícius Caldeira Brant, Eduardo Frei, Maria da Conceição Tavares, Fernando Henrique Cardoso, Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Beatriz Segall, Duarte Lago Pacheco Pereira, Leon Hirzman, Ricardo Lagos, Paulo Wrigt, Volodia Teitelboim, José Luiz Del Royo, Sérgio Motta, Egídio Bianchi, Arthur de Távola, Marco Aurélio Garcia, Paulo Renato Souza, Aldo Arantes, Rui Frazão, José Carlos da Mata Machado Violeta, Miguel Arraes e Betinho (o irmão de Henfil) e tantos e outros brasileiros que deixaram sua marca na história do nosso país.
Pode-se discordar de algumas de suas interpretações de fatos históricos, de ideias e pode-se estar do lado oposto ao de Serra, na disputa política. Isto é inerente à democracia. Mas não se pode deixar contaminar pelo calor do embate imediato. A miopia política pode levar a graves erros de juízo de valor de quem fez história, de quem tem uma folha corrida de serviços prestados à causa democrática durante mais de cinco décadas.
Deixemos para o poeta Ferreira Gullar as últimas palavras sobre Cinquenta anos esta noite e seu autor:
“Mas se este livro vale pelo seu conteúdo vale também pela qualidade intrínseca de seu texto, sucinto e claro. E, neste particular, nos mostra também quem é de fato José Serra, pois aqui não há exagero em dizer-se que o estilo é o homem.”
Hubert Alquéres é vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro e ex-presidente da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (2003-2011).
Um livro bom, que certamente não deveremos esquecer o que foi escrito.