Não acho nada que Natal seja quando um homem quiser. Os Natais da minha infância tinham data e mais data passaram a ter quando vivi Natais angolanos em cenário de catástrofe. O conflito, a vivência extrema, enchem qualquer Natal de estrelas tracejantes, de anjos desabrigados a que faltam as asas, às vezes uma perna ou um braço. Se foi isso que aprendi na vida, é também isso que todos os anos me confirma o cinema quando vejo It’s a Wonderful Life, filme de um anjo, Clarence Goodbye, que há 293 anos tenta ganhar as suas asas.
Só conheci uma pessoa com 293 anos, o João Bénard. Muitas vezes pensava se ele não teria saído do filme de Capra, se não seria um anjo a velar pelos suicidas e desesperados que se acolhiam à sala da Cinemateca.
Os filmes estavam na vida dele, a vida dele nos filmes, mas, convenhamos, a mãe dele não era o It’s a Wonderful Life. Por muito que amasse as mães dos filmes, as heróicas mães de Pudovkin, Ford e Rossellini, ou a mãe do North by Northwest, irónica, blasée, quase fútil se a futilidade combinar com a inteligência, era com a sua mãe, a mãe da sua vida, que ia almoçar uma vez por semana.
Quem levava o João Bénard a esses almoços imprescindíveis e inadiáveis era o Senhor Gil, o motorista da Cinemateca. O João e o senhor Gil eram já, se não foram sempre, unha com carne. Foi em Dezembro, e era a semana anterior ao Natal. No dia anterior caíra sobre Lisboa um daqueles temporais de quem pariu Mateus que o embale.
A cidade estava num caos, mas o João não era, e o senhor Gil bem o sabia, de prestar atenção a trivialidades. Falou-lhe de tudo e de nada, de que conseguira uma cópia dos Parapluies de Cherbourg, com uma Eastmancolor perfeita, para o ciclo Jacques Demy. Já o carro curvava para a Praça de Londres, apontado à Avenida de Roma, o destino do João. E, de repente, o João tira as asas e desce à terra: “Caramba, nunca imaginei que a chuvada de ontem tivesse feito esta razia. Já viu, Sr. Gil?”
O vivíssimo senhor Gil olhou à esquerda e à direita e admirou-se: “Mas já vi o quê, doutor Bénard?” O João abespinhou-se: “Então não vê?! Há centenas de árvores pelo chão.” “Ó doutor Bénard, isso são os pinheiros de Natal à venda.”
Nesse dia, ao almoço, a mãe do João riu-se, tal qual a Jessie Royce Landis no North by Nortwest de Hitchcock. Tinha à mesa Cary Grant e um pinheirinho de Natal. Um anjo talvez.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
It’s a Wonderful Life no Brasil é A Felicidade Não se Compra.
North by Northwest é Intriga Internacional.
Les Parapluies de Cherbourg é Os Guarda-Chuvas do Amor.