Os filmes só amam os livros quando os amam com segredo e reserva. Não me venham falar do Clube dos Poetas Mortos, execrável exibição circense do acto e do prazer da leitura. Confesso que tenho uma aversão parecida às sessões de leitura de poesia. Lido em público, com a compungida voz de quem tem as cuecas apertadas, o poema mais sublime aperta o nariz constrangido. O poema, na minha visão misantropa, tem aversão à plateia. Em voz alta, o poema pede para ser lido de boca a ouvido, numa intimidade que se torna ridícula se for descoberta.
Um pequeno filme onde se vê o amor da leitura é o Finding Forrester, de Gus Van Saint. Sean Connery é um escritor que, como J. D. Salinger, ficou cativo da própria obra, do único livro que escreveu. Para a sua caverna monástica, Connery arrasta o talento de um miúdo que, cheio de medo, quer fechar o bico a esse talento. À volta desse miúdo, o meio onde nasceu, os colegas e a escola onde o louvam pelo bom basquetebol que ele joga, tudo e todos querem que ele se envergonhe da horrível pulsão que tem para a escrita, da sua escabrosa fruição da leitura. É preciso um Sean Connery clandestino, bicho recôndito, para o trazer de volta e de vez ao vale de sombras, mistérios e absoluta tristeza da escrita.
A leitura e a escrita são, hoje, vítimas da intifada de um paradigma de muita pressa, alegria parva e tecnologia instantânea. Há dias em que o cinema sim, o cinema ama a leitura. Foi no cinema, essa fulgurante vibração do século XX que rasteja exangue pelo século XXI, que vi resgatar a leitura. Tremente e sexualmente resgatada na perturbação da voz de Natalie Wood quando lê, num filme de Elia Kazan, a ode de Wordsworth que canta a fugidia memória de uma infantil e inocente explosão de Maio – esplendor na relva, glória na flor – que não voltará a aflorar os nossos sentidos.
A literatura é aventura, é fuga, tiro, queda e má vida. Veja-se Pierrot le fou e ouça-se Jean-Paul Belmondo. Na banheira, lê um livro de bolso de Élie Faure. Vemos e ouvimos que lê para a filha que talvez nem 6 anos tenha. Ouçam-no: “Velásquez é o pintor da noite, dos grandes espaços e do silêncio”. Isto sim, é a paixão da educação. Pormenor não despiciendo: Belmondo lê na banheira e fuma, cigarro ao canto da boca. Um vício nunca vem só.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Estou com a mandíbula dolorida de tanto mascar chicletes de nicotina, para abandonar sem dor o segundo vício.