O seqüestro das muletas no puteiro de Joaquina

O sobrado amplo, de muitos cômodos, tinha aparência bem cuidada, ajardinado em todo o seu frontal, de ponta a ponta, entremeando roseiras trepadeiras, jasmineiros, brincos-de-princesa e outras tantas floreiras. O chão forrado de onze-horas formava um tapete colorido como colorido eram todas as plantas que ornavam a frente do terreno. Enquanto à esquerda a estrada acabava na mata fechada, à direita, entre a construção e pouco além da beirada do telhado de quatro águas, havia um portão de madeira, uma espécie de pequena porteira, permanentemente aberta, entrada que dava para os fundos do quintal, onde o estacionamento era sombreado por jambeiros, tamarineiros e abieiros, misturando frutos caídos que se tornavam refeições para bandos ruidosos de várias espécies de pássaros.

Aquela era conhecida pela maioria dos homens do lugar. Recebia desde roceiros, peões e garimpeiros até autoridades, como políticos e que tais. Não havia lugar e mulheres mais agradáveis que o puteiro da Joaquina. Portuguesa de lábios carnudos, seios redondos ainda firmes para a sua meia idade, nascida, criada e casada numa pequena freguesia nos arredores de Pinhão, no Trás-os-Montes, foi mantida escrava até fugir do marido ciumento depois da Revolução dos Cravos. Escapara até o porto de Vigo, na Galícia, amasiou-se com um marinheiro espanhol e embarcou numa navio mercante para sabe Deus onde.

O galego morreu numa briga no porto de Santos logo após terem atracado em terras brasileiras. Com a fortuna em jóias guardada numa sacola que lhe ia atrelada ao baixo ventre, subiu a Serra do Mar, procurou um endereço que trouxera lá da terrinha e aquietou-se por um tempo numa pequena pensão da Rua Santa Efigênia, cuja dona era conterrânea do Alto Douro.

Um dia, para não ter que vender as jóias, arriscou-se e por indicação da amiga foi ter a um bordel, onde fez a vida por dois anos. Juntou milhares de réis, conheceu um garimpeiro que viera do Norte e decidiu ir embora para a Amazônia, mais uma vez sem saber para Deus onde. Foi e foi, chegou no Pará, subiu o Amazonas, o Negro e o Branco e acabou se enraizando num gleba de terras no Jacamim, na fronteira da floresta com o lavrado, ganhando da natureza uma bela vista para seus olhos já meio cansados: o Morro do Corupira.

Decidiu abrir negócio, e então separou a bolsa do baixo ventre, vendeu as jóias e investiu na bela casa. Em pouco tempo já era falada por toda a região pelo ambiente aconchegante e as jovens mulheres que selecionou a dedo em Manaus, Santarém, Venezuela e Guiana, detalhes que atendiam os que vinham do outro lado das fronteiras.

Uma delas, chegada há menos de um ano, era a tetéia do puteiro, capaz de atender de três a quatro homens por noite, menos nas noites de domingo. Nesse dia dava exclusividade a um garimpeiro que nos fins de semana vinha das bandas de Frenchman Hill. Toda sexta-feira ele viajava duas horas, atravessando a reserva ambiental Iwokrama, já na floresta amazônica, cruzava de balsa o Kurupukari e depois o Tacutu, embarcava num ônibus em Bonfim e completava a viagem uma hora depois já em Boa Vista. Na segunda-feira bem cedo fazia trajeto inverso de volta ao inferno escondido nas selvas da Guiana Inglesa.

Não gostava muito de ficar na cidade, pois nela também vivia Francisquinha, que conheceu bem novinha, formosa feita uma fada e tão raivosa feito o cão quando o ciúme lhe batia no coração. Fora amor roubado por outro garimpeiro, mais jovem, mais bonito, igualmente bamburrado. Assim, com a alma latejando pelo sentimento de vingança, restava-lhe o consolo de ir buscar nos braços e no corpo de Verônica, maranhense de pele amorenada e olhos verdes, o que não lhe dera aquela por quem ainda nutria paixão platônica.

Então, como fazia todo domingo, José Correia, o Macuxiba, filho de uma índia macuxi com um aventureiro da Paraíba, tomou banho, fez a barba, se perfumou todo, vestiu o terno de linho branco que comprara em Georgetown, chamou um táxi e se foi para o puteiro da Joaquina. Chegou, cumprimentou as pessoas, passou o olhar pelo ambiente e pela primeira vez em meses não viu quem queria. A portuguesa sentiu o estranhamento e tratou de acalmá-lo: ela estava atendendo Deolindo. Arre égua!!! Justamente o marido de Francisquinha?

Joaquina explicou que Deó (era assim que o pessoal do puteiro o conhecia) sofrera um acidente e estava usando muletas para mal-e-mal ir daqui para ali. Daí ter atendimento preferencial e prioritário, inclusive o de receber a ajuda da moça para subir as escadas até o quarto. Quando disse que só acreditaria vendo, Joaquina apontou-lhe o par de muletas no canto da sala. O sangue subiu-lhe à cabeça, o desejo de vingança explodiu no peito e como pagava o taxista para que o esperasse até fazer o serviço e com ele voltar para a cidade, sequestrou as muletas, correu para o carro e mandou que tocasse para Boa Vista.

No caminho, já com o plano arquitetado, cochichou um endereço no ouvido do motorista e determinou que fossem para lá. Cerca de 40 minutos depois o táxi estacionou numa casa bonita, de construção recente, portões automáticos e com comunicador interno. Chamou pela dona, ela veio e ele então lhe entregou o par de muletas com a recomendação:

– É pra você levar a Deó no puteiro de Joaquina, na estrada no Jacamim. Sem elas ele não vai conseguir voltar pra casa.

Constatou que eram mesmo as muletas do marido e então viu seus lábios enrijecerem, os olhos já coberto pelo ódio, parente próximo do ciúme, e aquilo lhe trouxe um gozo indescritível. Tudo bem que perdera o amor de Francisquinha, pois ela nem sabia que ele a amava, mas perder a exclusividade domingueira de uma puta, isso não…

Plínio Vicente publica semanalmente suas crônicas no Jornal de Roraima.

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