O dia em que Joãozinho conheceu o doutor Ulysses

Quando cheguei a Roraima, em fevereiro de 1984, o então território federal tinha como governador o general Arídio Martins de Magalhães, indicado pelo Ministério do Interior e nomeado pelo presidente da Republica. A polarização política se dividia entre o PDS e o PMDB.

O primeiro abrigava a elite – políticos e empresários chapas brancas e servidores públicos -, toda ela aliada de primeira hora do regime militar; do outro lado estavam aqueles que, por alguma razão, não encontravam espaço no grupo situacionista.

Esse grupo do contra tinha em seu meio, como principais patrocinadores, alguns empresários pequenos que não conseguiam vender para o governo. A eles se juntavam advogados independentes em busca de uma causa, qualquer que fosse, e políticos excluídos dos quadros pedessistas. Havia também um grupo de jovens extremistas e barulhentos, filhos de famílias mais abastadas, vários deles estudando em centros mais adiantados.

Entre os que faziam oposição ao grupo do brigadeiro Ottomar de Sousa Pinto, e também ao general Arídio Martins de Magalhães, governador indicado por Mário Andreazza e nomeado por João Figueiredo, me chamou a atenção um sujeito baixinho, cabecinha redonda, careca já bem dominante, cara de quem era acionista das cervejarias. Joãozinho Melo tinha uma prosa solta, falava com certo conhecimento sobre muitos assuntos, mas era ainda mais eloquente quando a conversa girava em torno do Flamengo, do PMDB e de seu grande ídolo, o doutor Ulysses Silveira Guimarães. Sim, era assim que ele fazia questão de chamá-lo, pronunciando tratamento, nome e sobrenomes.

Quase sempre vestido com uma camisa do Mengão, nas primeiras vezes em que conversamos confidenciou-me que todos os meses separava uma parte do seu salário de assistente administrativo e enfiava o dinheiro numa garrafa pet, uma espécie de conta poupança. Quando o domingo de um Fla-Flu se aproximava, ligava para um primo no Rio, pedia a compra de ingresso, rasgava o cofrinho, pegava um jato da Cruzeiro do Sul no sábado à noite e amanhecia na Guanabara. Assistia ao jogo, passava a noite de domingo e toda segunda-feira comemorando a vitória ou amargando a derrota e à noite viajava de volta.

Assim que me instalei como correspondente, Joãozinho transformou-se em meu consultor para todo tipo de assunto. Filho de antiga família de fazendeiros roraimenses, mas já em estado de decadência financeira, conhecia todo mundo e cada palmo do território. Sabia os nomes de todas as aldeias indígenas, quando foram criadas, seu tamanho e localização, quem eram os tuxauas de cada maloca e os missionários que, fofocas à parte, caiam em pecado e andavam trazendo ao mundo indiozinhos de olhos azuis.

Foi assim, com a sua ajuda, que construí uma agenda na qual estavam as melhores fontes; e foi assim também que em pouco tempo consegui fazer grandes matérias, muitas delas furos de reportagem que deram manchetes no velho Estadão.

Um dia, precisando de informações sobre um garimpeiro, contrabandista e traficante, que as suspeitas indicavam ser amigo de um delegado da Polícia Federal, levei Joãozinho Melo para uma cervejada no bar da Mangueirinha, às margens do rio Branco, no centro histórico de Boa Vista. Certamente teria boas informações sobre o cara, pois já o vira com ele em algumas oportunidades.

Quando chegou, meu amigo se desculpou pelo atraso e justificou: tivera que passar na loja de decorações para apanhar um pôster do doutor Ulysses, que mandara emoldurar. Presente de um deputado federal, era um desses que decoram gabinetes, no qual o sujeito faz pose de estadista.

Durante nossa conversa Joãozinho dividia o olhar entre o copo de cerveja e o quadro. O que me contou valeu matéria que levou à prisão do garimpeiro, já condenado por crimes cometidos em Bauru, no interior de São Paulo, e que integrava a lista de procurados da Interpol. Por sua vez, o delegado acabou réu em processo administrativo, indiciado em inquérito pela PF e exonerado. Mais tarde, considerado culpado pela Justiça Federal, foi condenado a cumprir pena alternativa: prestar durante um ano defesa gratuita a réus primários. Depois disso foi embora de Roraima e nunca mais o vi.

Um dia, conversando com o pessoal da sucursal de Brasília, soube que o doutor Ulysses viria a Boa Vista pela primeira vez. Estávamos às vésperas das eleições de 1986 e, empurrado pelo Plano Cruzado, o PMDB de José Sarney estava surrando o PDS em quase todos os Estados. Tanto é que elegeu 22 governadores contra apenas um pedessista, o de Sergipe, Antonio Carlos Valadares (Nessa época não havia eleições diretas em Brasília e nos territórios federais, e o Tocantins só nasceria com a promulgação da Constituição de 1988).

Em Roraima a elite ainda era alinhada com os militares, daí os apelos para que ele viesse fortalecer o partido na capital macuxi. Foi assim que ele garantiu pelo menos uma das quatro vagas para deputado federal a que o território tinha direito no Congresso Nacional.

Eu já conhecia Ulysses e não por conta da minha profissão. Quando do nosso primeiro encontro eu era empregado da Cia. Paulista, já encampada pela Fepasa. Meu falecido sogro, Sálvio de Campos, também ferroviário, fora amigo dele na juventude em Rio Claro. Sempre que coincidia o fato de ambos estarem na cidade, eles e mais um grupo de amigos da mesma época acabavam se encontrando.

Numa dessas ocasiões fui a Rio Claro com minha noiva, Maria Salete, e mais a família dela para uma visita a parentes. Foi então que passei cerca de duas horas no encontro dos velhos amigos. Mais tarde, já jornalista, o encontrei duas vezes em Brasília.

Quando dei a notícia a Joãozinho Melo os olhinhos dele arregalaram, acompanhados de um sorriso franco de felicidade, seguidos de uma expressão de ansiedade: será que conseguiria um encontro com seu ídolo?

No dia da chegada levei meu amigo ao hotel em que o doutor Ulysses se hospedou. Quando ele desceu do apartamento já no final da tarde e entrou no lobby, fiz questão de cumprimentá-lo.  A segurança ia me barrando quando seus olhos claros fixaram-se em mim. Ele abriu um sorriso, veio ao meu encontro, me deu um abraço e perguntou: “E o meu amigo Sálvio, como ele está?”. Lamentou saber de sua morte e contou que foram muito amigos, o que deu à nossa conversa a oportunidade que esperava.

Antes que seus assessores o levassem lhe pedi um favor: fazer uma foto dele com um dos seus maiores fãs. Apresentei-lhe Joãozinho, cuja cabeça batia na barriga do presidente da Câmara dos Deputados. Disparei minha velha Yashica três vezes e mais não fiz porque ele desapareceu no meio das centenas de pessoas que o aguardavam na porta do hotel. Mas o meu amigo não, ficou ali, arriado no sofá, olhando para a mão que cumprimentara o doutor Ulysses.

À noite, no discurso que fez na Avenida Venezuela, numa área entre os bairros Messejana e Liberdade, dois vultos se destacavam no palanque pela enorme diferença de tamanho: Ulysses Guimarães e Joãozinho Melo.

No dia seguinte chamei Joãozinho para uma cervejada no bar da Mangueirainha e entreguei a um sujeito ainda emocionado as fotos e os negativos. Não muito tempo depois ele me apresentou o novo pôster, aquele do dia em que ele conheceu o doutor Ulysses. E que ficou na parede da sala de sua casa até o dia em que, atacado por uma grave cirrose hepática, morreu em 9 de dezembro de 1989.

O autor é jornalista em Roraima.

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