Entrou em Alcatraz e o director da prisão não voltou a ter sossego. Choviam telefonemas e visitas. Al Capone era, em 1934, o que ontem foi um O. J. Simpson e hoje é o caso BES.
Prenderam-no por minudências fiscais que uma notória inveja social sobrevalorizou. Na prisão de Atlanta, para onde primeiro o levaram, reconheceram-lhe estatuto, o direito a uma identidade. Cultural, diria. A alcatifa na cela, o majestoso rádio para ouvir folhetins, a cama de água que lhe afagava a embrionária hérnia, não eram mordomias ilícitas, eram a legítima defesa de uma reputação.
Nasceu em Brooklyn, onde as vocações são pré-púberes. Al Capone, imberbe em cima e imberbe em baixo, já geria um negócio de favores femininos e, aos 20 anos, foi o mais jovem CEO de um afamado clube nocturno de Chicago.
Em ambiente hostil, cercado pela incompreensão que hoje brinda um Madoff, um BPN, Capone teve carreira genial. As indústrias do lazer, antepassado popular das agora selectas indústrias culturais, foram a sua paixão. Dinamizou o mercado das bebidas espirituosas e o escape social dos jogos de azar. Fê-lo com management de excelência, benchmark do seu tempo.
A transparente vida pública granjeou-lhe popularidade galáctica. Contou muito a sua bonomia, olhos vivos, boca carnuda e risonha, de que o De Niro dos Untouchables é pálido retrato. Os projectos de responsabilidade social fizeram dele um Robin Hood dos anos 20. Assistiu os mais carenciados com programas que um olhar de águia notará serem a premonição do rendimento mínimo garantido que campearia em décadas vindouras.
O seu empreendedorismo e heterodoxia empresarial, a fácil relação com o povo eleitor, geraram a rivalidade dos políticos, num tempo em que as parcerias público-privadas, as líricas PPP, ainda não tinham caldo cultural para florescer.
Diga-se: usaram contra ele a brutal e desmedida arma fiscal. Perdeu essa batalha. Perdeu a segunda, em Alcatraz. O vingativo sistema prisional pô-lo a trabalhos, pão e água, numa regressão face aos progressivos ideais de reinserção social da cela inicial de Atlanta.
Mesmo neste século de subprime, o sarro do preconceito e o atavismo das ciências sociais, ignorando-lhe a pulsão benemérita, continuam a derramar infâmia sobre o seu amor à coisa pública, o seu inovador modelo de gestão redistributiva. De Palma tem de o voltar a filmar.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.