No embalo de mais uma ofensa racista entre as muitas que têm ocorrido nos campos de futebol do Brasil e mundo afora, esta última, a de torcedores do Grêmio contra o goleiro santista Aranha, me leva a viajar no tempo para resgatar um episódio que testemunhei há uns 20 e tantos anos. Ele me serve para mostrar como nem sempre as coisas são como nossos olhos vêem e nossos ouvidos escutam.
Metade dos anos 80, o aeroporto internacional de Boa Vista era o terceiro mais movimentado do país. Perdia apenas para Congonhas em São Paulo e Santos Dumont no Rio. Por conta da corrida do ouro, o pátio ficou pequeno para abrigar o estacionamento de mais de 400 aeronaves, que todas as manhãs e tardes formavam verdadeira procissão no espaço aéreo da cidade.
Geraldo Cazzali, o “Foguinho” por conta de seus cabelos cor de fogo, 65 anos, nascido em Pirassununga (SP), era uma figura ímpar. Alegre, brincalhão, destemido, destacou-se rapidamente entre os milhares de “estrangeiros” que vieram viver a grande aventura dos garimpos. Pilotava um P56 também vermelho, a mais popular aeronave da época, conhecida por Paulistinha, e com ela que fez fama por jamais ter enjeitado vôo para algumas pistas de garimpo curtas e mal conservadas. Cheguei a voar com ele, inclusive para o Paapiú, onde fui cobrir para o Estadão os conflitos entre ianomâmis e garimpeiros em meados de 1987.
Certa manhã, pouco depois de o dia clarear, “Foguinho” pegou frete para levar mantimentos e uma cozinheira à pista da Caveira, no capacete de um morro onde se confundem as fronteiras do Brasil e Venezuela. Caveira, diziam, porque foi onde mais morreu garimpeiro naquela época, a ponto de as caveiras ficarem expostas em covas rasas nas beiradas da pista de apenas 240 metros de comprimento por oito de largura.
Entregou a carga e a cozinheira a um sujeito que já esperava por eles e os viu desaparecerem trilha adentro, morro abaixo. Virou o bico do avião, deu partida, acelerou e decolou. E lá foi ele, zooooooooooooooooommmm, na direção da cabeceira, como se estivesse decolando de um porta-aviões. Quando acabou a pista e caiu no vácuo, puxou o manche para recuperar altura e então percebeu que alguma coisa estava errada. Encurtando a história: perdeu os controles, embicou no despenhadeiro, enroscou-se nas copas do arvoredo e foi bater lá em baixo, onde as embaúbas novas e o capinzal que tomaram conta de um velho garimpo amorteceram o baque e lhe permitiram sair com vida.
Foram dias de penúria enfrentando as adversidades da selva até conseguir chegar a uma pista de onde foi trazido para Boa Vista são e salvo, exceção a algumas escoriações, o orgulho ferido e um avião em frangalhos, estolado no meio do nada. Perdido o Paulistinha, ficou sem voar e passou a viver de maneira curiosa: limpava lojas dos compradores de ouro, bateava a poeira e com as poucas gramas que apurava pagava a comida do dia a dia e o aluguel de um quartinho modesto, o 17, numa vila com entrada no no. 77 da Rua do Ouro, ao lado de uma lotérica.
E assim se passaram os anos. Em pleno auge do Plano Real, com a economia estabilizada e todo mundo ganhando dinheiro, “Foguinho” continuava na mesma penúria, aliás agora bem maior com o fim dos garimpos em Roraima. Certa tarde, já quase no final de 1996, sentado em um banquinho, viu um volante da mega-sena, recém-implantada, voar pela calçada, trazido pelo vento, até parar junto a seus pés. Imaginou que a sorte estava à sua procura e resolveu fazer a aposta. Mas que números escolher? Pensou, pensou e então decidiu marcar a data de seu nascimento, o mês e o ano. Mas isso só cobria três dezenas e ele precisava de seis. Separou o século do ano do nascimento e agora só faltavam duas.
Pensou mais um pouco e parecia que as idéias não vinham. Até que se perguntou: “Por que não 77?” Só que as dezenas da mega-sena vão até 60. Resolveu subtrair essa dezena do 77 e marcou 60. Mas ainda faltava uma. Quase que automaticamente usou o que sobrou e tascou 17, macaco no jogo do bicho, cujas dezenas na loteria do zoológico começam com 65, coincidentemente também a sua idade. Jogou, jantou e foi dormir já sonhando com a bolada do prêmio.
Na manhã seguinte entrou na lotérica e pediu o resultado. Quando botou os olhos nos números quase teve um infarto. Acertara cinco dezenas e só faltara mesmo a 17, que dera lugar a um inimaginável 01. Ganhara um bom dinheiro com a quina, mas não o grande prêmio, que seria a sua redenção, inclusive para poder comprar um novo avião e ir atrás de outro garimpo.
A frustração o fez perder o rumo. Desorientado, foi andando pelas ruas, entrou na Avenida Jaime Brasil, àquela hora da manhã cheia de gente indo e vindo. Olhando na cara das pessoas exclamava: “Macaco!!!, macaco!!!, macaco!!!….” Quem tinha a pele classificada no regime de cotas e que pelo politicamente correto devem chamadas de afrodescendentes, se ofendeu, chamou a polícia e “Foguinho” foi levado preso. O delegado de plantão era um negro enorme, desses sem pescoço tamanha a sua compleição física. Magro, franzino, “Foguinho” temeu pelo pior.
Quando estava para ser autuado com base na Lei Afonso Arinos, acusado da prática de ofensas raciais, explicou tintim por tintim o porque do seu comportamento. Mas não teve jeito e amargou o resto do dia na cadeia. Até que um amigo advogado foi socorrê-lo. Acabou inocentado e liberado e desde então vive perseguindo sorte jogando em todas as loterias da Caixa. Mas 17, macaco, nunca mais…
O autor é jornalista em Roraima.
As torcidas deveriam chamar os adversários de 17. A gremista deveria adotar o coro, é 17, é 17, é 17.Politicamente correto?