Locke é cinema em alta voz

Se nunca viram um filme em alta-voz, expe­ri­men­tem. Esque­çam o 3D, o Imax e cor­ram a ver Locke, pequena, monó­tona e exal­tante obra-prima. Em Under the Skin e Blue Ruin, os mais belos fil­mes de estreia do ano, os car­ros eram pro­ta­go­nis­tas, uma ope­rá­ria Ford Tran­sit com a que já sabem Scar­lett ao volante, um arrui­nado Pon­tiac que ter volante já era uma sorte.

Locke que é agora, no meu pan­teão anual, tão bom como Under the Skin, mesmo que nele me falte a feri­da­zi­nha de Scar­lett, tem um BMW omni­pre­sente, mas esquecemo-nos dele. Não é o filme de um carro, é o filme de um tele­fone e da pro­di­gi­osa inti­mi­dade do sis­tema de alta-voz. E se as vozes vão e se as vozes vêm em Locke!

Fala-se, chora-se, grita-se, insulta-se, implora-se, sussurra-se, tudo sem mãos. Mas sem mãos como é que se ata­cam as sal­si­chas que a mulher nos gre­lhou, como é que se agar­ram as fresquís­si­mas cer­ve­jas ale­mãs que o nosso amor (ou já não é o nosso amor?) foi bus­car ao hipermercado?

zzzzmanuel

Há, em Locke, um jogo de fute­bol em fundo. Um joga­dor tosco, para mara­vi­lha de dois filhos e acres­cida angús­tia de um pai ausente, faz uma jogada soberba, ine­nar­rá­vel. Vemo-la? Vemos sim e até de olhos fecha­dos a vería­mos, mesmo debaixo de um escuro len­çol, se o ine­nar­rá­vel fosse nar­rado pela boca do filho a que esta noite, a noite deste filme, não dare­mos o beijo prometido.

O engenheiro-chefe, pro­ta­go­nista de Locke, é um homem com esco­lha. Tem três esco­lhas: duas mulhe­res e uma gigan­tesca obra em cons­tru­ção. Bem sabe­mos como toda a esco­lha é triste. A amar­gura dessa esco­lha passa por Locke a uma velo­ci­dade ligei­ra­mente supe­rior à velo­ci­dade legal em auto-estrada. É uma infrac­ção mínima, quase invo­lun­tá­ria, e é a pro­saica tris­teza dessa infrac­ção que guia a noc­turna e uni­di­rec­ci­o­nal mise-en-scène deste filme: linha recta e eufo­nia vocal.

Dou-me agora conta da surda (?) iro­nia de Locke: sem mãos, mete-nos nas obras. O sólido talento de Ste­ven Knight, o rea­li­za­dor, trans­forma a entrega de umas tone­la­das de cimento na bata­lha de emo­ções que Samuel Ful­ler dizia ser o cinema. Nunca um espec­ta­dor mer­gu­lhou num esta­leiro, vigas e cimento, como neste filme. Entra­mos por ali den­tro sem mãos. Saí­mos e pode­mos dizer: já tra­ba­lhei nas obras. Em alta voz, claro. Como em alta e ave­lu­dada voz um homem se dila­cera entre duas mulheres.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

manuel.s.phonseca@gmail.com

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.

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