João Geada e Chico Gasparzinho

Eu tinha 7 anos, não mais que isso, quando vivi uma das experiências mais excitantes da minha ainda curta vida. Minha família morava numa fazenda ao lado da pequena vila de Guatapará, a 42 km de Ribeirão Preto. Diversão por ali era pouca: pescar, caçar (a ecologia ainda era palavra ausente no dicionário das nossas consciências), brincar as brincadeiras comuns de crianças, assistir aos jogos de futebol entre os craques do lugar ou a melhor delas, esperar a chegada dos trens. Os da Cia. Paulista, que vinham de ou iam para São Paulo, e os da Cia. Mogiana, que faziam a ligação entre a vila e a capital do café.

Certo dia, não me lembro bem quando, mas creio que em junho ou julho, pois era inverno, anunciaram a chegada de um trem especial da Mogiana, que traria de Ribeirão a comitiva do rei Leopoldo, da Bélgica, que estava visitando a região. Não seria um trenzinho qualquer, como os mequetrefes com os quais estávamos acostumados nas rotineiras chegadas e partidas. Falavam em meia dúzia de vagões de primeira classe, daqueles que a gente sabia que existiam só de ouvir falar, mas que nunca haviam rodado até à vila. Coisa de cinema, capaz de mexer com a nossa imaginação.

A sexta-feira começou agitada, ocupada com comentários e fuxicos sobre quem ia fazer o quê, mas cada um pensando em conquistar o melhor lugar na esplanada da estação. O tempo seria curto para ver a família real “belgicana” como diria o saudoso e folclórico Vicente Matheus, lendário presidente do Corinthians. O trem da Mogiana chegaria pela direita e do outro lado, à esquerda, já estaria chegando o trem da Paulista, que levaria Leopoldo para São Paulo. O tempo de permanência seria o suficiente para que os carregadores transportassem de um trem a outro a bagagem real e os teréns dos acompanhantes plebeus. Mas o suficiente para a tietagem e os salamaleques das “autoridades” locais: os chefes das estações ferroviárias, que dividiam o mesmo prédio; o padre; o dono do cartório e o gerente do Banco do Brasil.

Mulheres e moças correram para aprontar roupas novas, marmanjos entupiram o único salão de barbeiro e engraxates se multiplicaram para dar conta da demanda. As crianças… bem, criança não conta muito nessa hora, elas não têm como enfrentar a vaidade dos adultos. Mas eu, devido à minha condição de deficiente, consegui um salvo-conduto para ficar sentado bem ao lado do guichê de venda de passagens, lugar privilegiado que me foi garantido depois de muitos apelos.

O sábado amanheceu diferente. Não nasceu como um dia comum, igual aos outros, quase todos tomados pela costumeira modorra que envolve a vida preguiçosa do interior. Nem bem o sol botou a cara no horizonte, a vida agitou-se de tal forma que pessoas começaram a surgir de todo canto numa procissão que foi se juntando no rumo do mesmo destino. O dono do bar reforçara o estoque de comes e bebes, antevendo um faturamento que jamais alcançara mesmo em ocasiões especiais, ainda que nenhuma delas tenham sido da mesma importância que a da passagem de um rei.

Com a pontualidade deixada pelos britânicos, construtores das nossas primeiras ferrovias, uma rotina quando as estradas de ferro eram o principal meio de transporte terrestre, a maria-fumaça da Mogiana deu um silvo de alerta, anunciando sua chegada. As pessoas se espremeram na borda da esplanada, olhares virados para o estirão, uns 500 metros de trilhos pelos quais, apontando lá em cima, surgiria a garbosa locomotiva a vapor que puxava os comboios de antanho.

Trem-trem-trem-trem, trem-trem-trem-trem, trem-trem-trem-trem e ela veio vindo, veio vindo, tomando forma e crescendo nos olhares curiosos. Foi quando alguém gritou:

– Ué!!! Só tem um vagão…

Foi um “uuuuhhhh!!!” como jamais se ouvira um “uuuuhhhhh!!!”daqueles por aquelas bandas. Formou-se um burburinho generalizado, com comentários se intercalando desgovernadamente numa onomatopaica conversação de indignação e sem nexo. Quando o trem – locomotiva e vagão – parou bem no meio da gare, centenas de frustrados espectadores viram descer não o rei Leopoldo da Bélgica, nem seus súditos e acompanhantes, mas… João Geada e Chico Gasparzinho, dois irmãos que há trinta anos tinham ido embora para fugir da miséria. Aventuraram-se no comércio de café em Santos, fizeram fortuna e decidiram realizar um velho sonho de criança: voltar para casa num trenzinho só deles.

O autor é jornalista em Boa Vista, Roraima. 

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