Quando vemos, num filme, uma personagem que dorme, sabemos que estamos a ver um actor a fingir que dorme. Em A Palavra, de Dreyer, há uma mãe morta, num caixão aberto. Está morta, dizem, mas para a filha, criança inocente, e para o tio louco, esta mãe morta parece apenas que dorme.
Lembrei-me destas coisas ao pé da minha mãe, que estava, agora, quieta e em silêncio, deitada em panejamentos de seda branca, e me parecia dormir. Ao lado tinha o meu pai, que fomos resgatar a um escuro sono de 19 anos. Eu já vou tendo a idade do capitão Nathan Brittles e já posso, como ele em She Wore a Yellow Ribbon, falar com os meus mortos. E mais ainda numa capela setecentista, no dia em que, reencontrados, pai e mãe voltaram a jurar o amor que se tinham e me deixaram ouvir tudo, ali sozinho com eles, numa meia hora de intimidade e eternidade.
De raízes e emoção, os funerais mais bonitos que já vi foram os do Gardens of Stone, de Coppola. Também a minha mãe quis voltar à aldeia onde nasceu. O Azinhal é uma lindíssima aldeia de pedra, ruas e casas de um orgulho beirão – orgulho de granito. Revisitei as ruas onde há meio século não voltava, e uma menina, igualzinha à de A Palavra, vendo-me o casaco e a gravata, perguntou: “Vais a um casamento?”
Na igreja, estava a aldeia toda. As mulheres, sobretudo as mulheres, num coro espontâneo, cantaram aleluias e o sanctus. Era uma igreja cheia de homens e mulheres a cantar e a rezar, em voz viva, orações de defuntos. Já não me lembrava do que era uma comunidade a respirar tradição, com a naturalidade de quem mete ar nos pulmões. A pé, seguimos a minha mãe e o meu pai até ao cemitério, com os pendões das confrarias, estandartes do Gardens of Stone levantados ao sol abrasador das 13 horas. No Azinhal, John Wayne não teria gritado o “Amen” com que, abrupto, despacha um funeral em The Searchers. No Azinhal, ninguém tinha pressa e um miúdo de 12 anos foi o primeiro a lançar um punhado de terra para cima das duas urnas juntas. Fez aquilo como se a terra, esfarelada e negra terra, fosse um traço de harmonia entre a vida e a morte.
Não estava à espera de tanta beleza. Não sei se foi um casamento ou um funeral. Os meus pais, como dois consumados actores, parecia mesmo que estavam a dormir.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
She Wore a Yellow Ribbon no Brasil é Legião Invencível. Gardens of Stone, Jardins de Pedra. E The Searchers, Rastros de Ódio.