“Eram as mais puras crianças da Terra, jovens e boas”

O 15 de junho era um dia de verão perfeito, com céu azul, sol brilhando, alegria a bordo, crianças correndo em suas explorações, uma bandinha alemã tocando. A igreja havia pago US$ 350 pelo aluguel do barco, e os ingressos, aproximadamente mil, foram vendidos somente para adultos. Crianças tinham acesso livre, e as mães as levavam ou pediam a amigas que as acompanhassem. Foram mais de trezentas.

O General Slocum partiu do píer da Rua 13 Leste em Nova York pouco depois das nove. Estava previsto que o piquenique começaria ao meio-dia e que todos estariam de volta às suas casas às 11 da noite. Isso nunca aconteceu.

Os Addick estavam a bordo. Ernst, 37 anos, nascido na Alemanha, dono de uma loja de guloseimas, e sua mulher, Anna Stuve Addick, 33; a sogra, Margaret Stuve, 65, os filhos Margaret, 12, John, 16, Martha, 11, Annie, 7, e Ernst, 5. Havia ainda Margaret Heidkamp, 13, filha adotiva.

O garoto Charles Schwarts Jr., 18 anos, aprendiz de mecânica, um dos muitos que correram para ajudar, contou:

– A primeira pessoa que vi foi a senhora Addick, e ela me chamou pelo nome. Eu a socorri mantendo seu queixo fora da água e puxando seu corpo. Chegou à praia bem, não estava muito ferida. Atirou seus braços em volta de meu pescoço e me deu um beijo.

A primeira lista de mortos traria as duas Margaret – Addick, 12 e Heidkamp, 13 – e John, 16. Em lista posterior estava Martha, 11. Como desaparecida, Mary, 9, e hospitalizados Annie, 7, e Ernst, 5.

As relações de mortos e desaparecidos são inúmeras, e incompletas. Uma das sobreviventes, como conta J. S. Ogilvie em seu livro História do Desastre do General Slocum, foi a senhora Lena DeLuccia, 29, que levou seus quatro filhos, entre 2 e 12 anos: Agnes, Frank, Nicholas e Rose. Lena morava no número 54 da Rua 7, e convenceu a vizinha do apartamento em frente ao seu, Sophie Siegel, recém casada, a acompanhá-la. A senhora Galefsky, do andar abaixo, também decidiu ir, e levou seus dois filhos. Apenas a senhora Lena voltou.

Poucos ali sabiam nadar. Não estaríamos muito errados se disséssemos que 1.021 estavam nessa condição, ou que simplesmente não conseguiam atirar-se na água. Porque eram 1.342 pessoas quando o fogo começou. E se todas elas, as 1.021, se jogassem na água ao mesmo tempo, também haveria uma tragédia, mas menor.

As 1.021 morreram. Incêndio a bordo da nave General Slocum, em 15 de junho de 1904 – há 110 anos, portanto – no East River, em Nova York. Poucos sabem, e muitos dos que sabiam provavelmente já se esqueceram de que foi este o mais terrível acontecimento naquela cidade até o 11 de Setembro.

zzslocum

Construído em 1891, o PS General Slocum era um barco a vapor – movido por duas hélices com 26 remos cada, dispostas nas laterais – normalmente alugado por grupos que saiam a passeio ao longo do East River, em Nova York. Naquele dia ele deveria levar convidados da Igreja Luterana São Marcos, liderado pelo reverendo George Van Haas, em um piquenique comemorando o final do ano letivo, e que aconteceria ao Norte de Long Island. Mesmo antigos moradores que haviam se transferido para o Brooklyn, Yorkville e Nova Jersey se juntavam à excursão, pagando do próprio bolso ou recebendo ingressos de comerciantes locais. Houve também os que não quiseram ir, temerosos depois de incidentes acontecidos anteriormente, relembrados pela imprensa.

Um banco de areia atingido pelo General Slocum em julho de 1894, com 4.700 pessoas a bordo, provocou pane no gerador central; no mês seguinte um baque contra Coney Island, durante uma tempestade, quando os passageiros tiveram que ser transferidos para outro navio; em setembro, uma colisão com o rebocador R. T. Sayre, com danos significativos no leme; outra colisão em 1898, com o barco Amelia; rebelião a bordo em 1901; atolado em junho de 1902, com 400 passageiros.

Mas naquela quarta-feira, 15 de junho de 1904, tudo parecia normal e a maioria dos passageiros eram mulheres e crianças vestidas com suas melhores roupas dominicais.

E principalmente moradores de Little Germany. No lado Leste, ao Sul de Manhattan, Little Germany foi o destino de milhares de imigrantes alemães que começaram a instalar-se ali em 1840. Cinco anos depois já era a maior comunidade de Nova York, número que cresceu quatro vezes e que chegou, no início do século vinte, ao total de 50 mil habitantes.

Tendo esse número diminuído bastante ao longo do tempo, Little Germany praticamente acabou quando o General Slocum matou aquelas 1.021 pessoas, e as famílias e amigos delas foram saindo dali.

Voltemos à senhora Lena. Ela saiu do mar com seus braços e mãos horrivelmente queimados e contou que estava no deck principal (havia três decks no General Slocum), próxima à caixa de uma das hélices, quando viu fumaça e chamas. Pegou no colo o pequeno Nicholas, de dois anos, e, com as outras crianças, agarrou-se ao corrimão. Disse que vários homens por ali gritavam que não havia perigo.

– Um grupo enorme de mulheres frenéticas me empurrou para o mar. Perdi Nicholas e não vi mais meus outros filhos. A senhora Siegel caiu ao meu lado, mas não a vi voltar à superfície. As máquinas do Slocum pararam e eu me agarrei à hélice. A hélice queimou, e o ferro ficou tão quente que cobriu minhas mãos de bolhas. Então um barco me pegou.

O escritor Glenn Stout também contou a história do desastre em seu livro Young Woman And The Sea.

“Pouco depois das 10 horas um garoto que explorava o deck inferior, bem em frente à cabine do piloto, sentiu cheiro de fumaça. Vivendo em um cortiço, onde um pequeno fogo podia se espalhar rapidamente e ameaçar dezenas, e mesmo centenas de residentes, até as crianças estavam atentas a qualquer centelha. Ele percebeu que havia algo errado, e então viu fumaça saindo de uma escada. Girou nos calcanhares e foi em busca de alguém da tripulação. Encontrou um marinheiro e o levou até a porta de onde a fumaça saia por baixo.

“O inexperiente marinheiro cometeu um erro enorme: abriu a porta. O fogo, que apenas começava, foi alimentado pela nova dose de oxigênio e ganhou vida. (…) O capitão William Van Shaick, olhando da cabine de comando, sabia que havia fogo a bordo, mas via apenas fumaça, e então cometeu seu erro fatal: pensando que era pouca coisa, ao invés de dirigir o navio para um dos decks ao lado do rio, resolveu seguir em frente e aportar em North Brother Island, mais de uma milha adiante.

“Não se sabe o ponto exato em que estava o navio quando o fogo começou. Ele havia acabado de passar Hell Gate, em frente ao Queens, e as pessoas na margem não perceberam qualquer sinal de pânico e, ao contrário, viram uma grande festa, a banda tocando e muita diversão. Como não havia motivo algum para preocupação, as crianças corriam livremente e suas mães cochichavam pelo convés – eram quase todas alemãs e se conheciam, tinham muitos assuntos em comum.”

O grito de fogo foi ouvido quando o Slocum estava mais ou menos em frente à Rua 131. O jornal The New York Times, que publicou um grande relato no mesmo dia, conta que foi ouvida imediatamente uma explosão abafada e um lençol de chamas envolveu a parte dianteira do navio. Ao mesmo tempo o incêndio foi visto pelas pessoas em terra, na altura da Rua 135. Conta o jornal:

“Imediatamente o pandemônio se instalou a bordo. As chamas, espalhando-se com incalculável rapidez, impeliram os passageiros para a traseira do navio. O capitão Van Schaick foi visto correr da cabine de comando após passar o timão para um de seus co-pilotos e gritar para que levasse o barco para a North Brother Island.

“A tripulação não tentou conseguir manter qualquer ordem no pânico que se desenvolvia. De acordo com alguns marinheiros sobreviventes a mangueira contra incêndio estava boa (embora outros tenham dito que ela havia apodrecido) e eles correram para seus postos, mas mesmo que tenham feito isso seria o mesmo que tentar apagar uma caldeira de óleo com um revolvinho de esguicho. Outros disseram que as bombas não funcionavam, e a mangueira foi abandonada. Ao mesmo tempo o Slocum seguia a todo vapor, e a velocidade do vento alimentava o fogo.”

Foi então uma corrida aos salva-vidas, mas eles, de fato, estavam podres e se desmanchavam. Muitas mães os colocaram em seus filhos e os jogaram ao mar, para ver, em desespero, que as crianças afundavam.

Quando o Slocum chegou à ilha foi em um ponto em que as águas são profundas e não há praia, só rochas. Com o baque, os dois decks superiores cederam e despejaram seus passageiros em uma enorme fogueira.  O terrível coro a bordo, de desespero, era ouvido da margem em Nova York, onde centenas de pessoas estavam agrupadas.

Muitas histórias de heroísmo foram contadas. O rebocador Wade, do engenheiro de bordo John Wade, e comandado pelo capitão Robert Fitzgerald, salvou 155 pessoas. O Wade estava no píer de North Brother Island quando a fogueira em que se transformara o General Slocum foi vista. Ele zarpou e permaneceu ao largo enquanto o navio se aproximava. Dúzias de mulheres e crianças, com as roupas em chamas, foram literalmente pescadas para o seu convés.

Ainda segundo a reportagem do New York Times, o bombeiro Edward Carrol, que estava a bordo, saltou para a água em busca de crianças que se debatiam. Ele conseguiu agarrar três, mas isso era demais para ele, que foi obrigado a abandonar uma para salvar as outras duas. Depois de colocá-las no Wade ele voltou para as outras e conseguiu salvar mais seis.

A tripulação do rebocador viu um policial, que foi o primeiro a chegar à ilha, salvar 11 pessoas. Quando tentava salvar a décima segunda, uma mulher, suas forças se esgotaram e ele afundou. Seu número na plaqueta de registro, anotara a tripulação, era 3.125.

James F. Gaffney, engenheiro na Ilha, viu o incêndio, chamou os bombeiros e entrou no mar com uma mangueira. Vendo que ela era inútil, abandonou-a e nadou até uma senhora que se debatia. Ele a trouxe para a ilha e, com cinco outros homens, deram-se as mãos e formaram uma corrente humana. Ele, Gaffney, na ponta da corrente, retirou da água 20 passageiros. No total, 50 foram salvos por eles.

Das oito pessoas indiciadas por um Grande Júri após o desastre, apenas o capitão Van Schaick foi condenado, no ítem ‘negligência criminal’, por não manter a mangueira de incêndio e os salva-vidas funcionando apropriadamente. O presidente em exercício, Theodore Roosevelt, negou-lhe o perdão, e ele recebeu pena de 10 anos de prisão em Sing-Sing. Cumpriu três. Foi perdoado por William Howard Taft, que assumiu a presidência dos EUA em 1909.

Adella Wotherspoon tinha seis meses de vida quando o General Slocum pegou fogo, e perdeu nele duas irmãs. Viveu 100 anos, acompanhou a tragédia do Titanic, em 1912, quando os mortos foram 1517, e comentou:

– Havia muitos passageiros ilustres. Aqui foi apenas um piquenique familiar.

Quando ela completou um ano, em 1906, desvendou um monumento às vítimas no Thompkins Square Park, mandado erigir pela Sympathy Society of German Ladies. No mármore, está gravado:

“Eram as mais puras crianças da Terra, jovens e boas.”

Esta reportagem foi originalmente publicada na Folha de S. Paulo, em março de 2014.

 

Um comentário para ““Eram as mais puras crianças da Terra, jovens e boas””

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *