Nota: Eis aqui um exemplar da ética não explicitada de toda uma época. A pobreza é fonte de virtude, a fé possibilita o milagre e o mal sempre é punido. Bem-aventurados os simples.
Era uma vez uma mulher muito pobre, que tinha muitos filhos, uns oito, e era viúva. Trabalhava na casa de uma mulher muito rica e muito má. A pobre trabalhava na cozinha da rica. Fazia pão, fazia biscoito, fazia bolo, fazia broa.
Naquela época as filhas casavam e continuavam morando com os pais. Então as casas eram enormes e cheias de filhos e filhas e genros e netos e netas e avô e avó e bisavô e bisavó e tataravô e tataravó. Essa mulher rica era também viúva e na casa dela vivia uma gentarada que só de pão era uma fornada enorme. Era a mulher pobre que fazia aquela pãozeira. E sempre sobrava muita massa no tacho ou na bacia ou no alguidar. Cada vez que terminava uma massa, a mulher pobre pegava uma colher de pau e rapava toda aquela rapa e botava numa gamela e de tarde levava pra casa dela. Aí ela encontrava os filhinhos chorando de fome e assava no fogão de lenha aquela rapa de massas e virava uma broa bonita e os filhinhos comiam e paravam de chorar e até já estavam gordinhos.
Todos os dias ela fazia isto.
Aí, num domingo, a rica estava passeando e encontrou os menininhos da pobre, limpinhos e gordinhos. Achou muito esquisito e resolveu espiar.
Na segunda feira ela ia diversas vezes à cozinha e reparou que a mulher juntava as rapinhas das massas e botava numa gamela. Aí ela vigiou a hora da pobre sair e seguiu ela. Viu como a pobre levou a gamela cheia de massa e entrou em casa. Olhou pela janela e viu os filhinhos chorando de fome e a mãe deles assou aquela rapa de massas no fogão de lenha e virou uma broa bonita e os meninos comeram e pararam de chorar.
Ora, a mulher rica era muito má. Resolveu vigiar na cozinha e quando no outro dia a pobre separou umas rapinhas, ela falou:
– Faça uns biscoitinhos com isto, pra não jogar fora.
A pobre fez.
Daí a pouco sobrou mais uma rapinha e a pobre botou na gamela e a rica falou:
– Não, quero que faça um bolinho com este resto.
E foi assim todo o dia. A mulher pobre separava a rapinha, a rica mandava assar. Não sobrou nada e a pobre foi embora de mão abanando, com os olhos molhados de chorar caladinha. A rica então ceou e foi dormir tranquila.
Aí se passou algum tempo e todo o dia a rica vigiava e nunca mais deu jeito da pobre levar as sobras da massa. Aconteceu então que noutro domingo, a rica estava passeando e encontrou os menininhos da pobre, limpinhos e gordinhos. Achou muito esquisito e resolveu espiar.
Na segunda feira, como sempre fazia, não deixou a outra guardar a rapa da massa. Quando a pobre foi embora, a rica seguiu ela. Viu como a pobre levou a gamela vazia e foi seguindo de jeito de não ser vista. Aí a pobre parou no meio do caminho, se abaixou e apanhou uma bosta de vaca inteirinha, seca e bem grandona. Colocou na gamela e foi andando e entrou em casa. A rica olhou pela janela e viu os filhinhos chorando de fome e a mãe deles assou aquela bosta de vaca no fogão de lenha e começou a rezar e virou uma broa bonita, mais bonita que as que a pobre fazia no forno da rica, cheirosa, fofinha e vermelha. Os meninos comeram e pararam de chorar.
Aí a mulher se arrependeu de tanta maldade e resolveu voltar pra casa e trazer um cesto de comida pra pobre. Mas quando ela chegou em casa, viu que tudo tinha pegado fogo e ela e sua familia tinham ficado mais pobres que a pobre da bosta da vaca.
– Conta outra, vó.
– Era uma vez um gato xadrez, quer que eu conte outra vez?
– Quero!
– Era uma vez um gato xadrez, quer que eu conte outra vez?
– Quero!
– Era uma vez um gato xadrez…
Casa grande e senzala. Conta outra vó.