Onde está a verdade das coisas? Por exemplo, onde está a verdade de Portugal? Numa refundíssima análise de José Gil ou aconchegada ao odor que emana de umas saias do Bolhão?
A pergunta surge em Sullivan’s Travels, de Preston Sturges, realizador de meia dúzia de obras-primas. No filme, o herói, também ele realizador, quer descobrir a verdade profunda da América.
Até lhe surgir a acne filosófica dessa busca do alfa e do ómega, fizera comédias ligeiras para deliciar o público. Mas, caramba, agora quer a radical verdade da América. Parte em viagem e leva com ele o mesmo heteronímico desassossego de Fernando Pessoa. Um dia, numa prisão, esperando encontrar a luminosa verdade nessa caverna de angústia e privação, assiste à projecção de uns desenhos animados de Disney e, na desmedida e pura alegria do riso dos presos, descobre que naquela simplicidade reside toda a luz, toda a verdade. Volta, é claro, sem estados de alma e reservas mentais, às suas comédias de Hollywood.
Pensando que toda a doença contem a cura, quando teve o segundo filho, Sturges quis dar-lhe doença e cura logo no berço. Olhou para a cabeça do infante e pareceu-lhe uma cabeça de músico. Comprou vinte sininhos e pendurou-os por cima das mãozinhas inocentes. A amálgama sonora que se seguiu fê-lo fugir.
Quando o filho fez quatro anos, Sturges julgou perceber que a cabecinha dele era a de um matemático. Começou então a azucrinar o miúdo com a mesma pergunta: “Qual é a raiz quadrada de 64?” A resposta inteligente da criança era sempre o mesmo “hã”? Muitos “hãs” depois, Sturges insiste, “qual é a raiz quadrada de 64”, e o filho, sem olhar para ele, diz “8”. Sturges chamou a mulher aos gritos, faz a pergunta e o miúdo repete o genial “8”. Era de forçar a sorte e Sturges perguntou, “e a raiz quadrada de 16?” Logo o miúdo, “8”. Foi distracção, pensou o pai, e soletrou “16”. “8” gritou o miúdo e a mãe ria-se, desvairada. A qualquer raiz quadrada, o imperturbável filho de Sturges respondia o imutável “8” que a mãe lhe ensinara, para pôr fim ao desatino pedagógico do pai. Foi o segundo Sullivan’s Travels de Sturges: na vida como no cinema, a própria doença traz a cura, mas é a começar por nós próprios.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Sullivan’s Travels no Brasil teve o título de Contrastes Humanos.