O tipo moreno, meio aciganado, ao volante do descapotável, virou-se para o amigo e disse-lhe: “Quando Jack Warner e Sam Goldwyn controlavam isto, Los Angeles era um lugar diferente”. O outro americano, olhar vago no caos morno da Santa Monica Freeway, fez que sim e justificou-se com queixinhas de telejornal, interesses corporativos, contabilistas e advogados que tomaram conta disto e a carreta que seria a avó dele se tivesse rodas. A barba cigana de Al Pacino eriçou-se e corrigiu mansamente o amigo: “Não é isso. Era diferente porque eram europeus.”
A Hollywood de que gosto é, confesso, europeia de pai e mãe. Da boca para fora, fala-se dos germânicos Murnau e Lubitsch. Da boca para fora e para dentro é um sueco vaivém de Greta Garbo e Ingrid Bergman. E não se diz que os homens que puseram o dinheiro, que negociaram, apunhalaram, sonharam e trapacearam, os Mayer (russo), Zukor (húngaro), Goldwyn (polaco) eram europeus. Os europeus são grandes patrões. Em particular se fugirem da Europa e das excepções.
Pacino ainda é europeu. Europeu de Nova Iorque. Três filhos e nenhum casamento, vive em Manhattan e deve dinheiro ao fisco. Come devagar, sem ler, se almoça sozinho. Se ouve música, Beethoven ou Mozart, só ouve música. São coisas que Pacino tenta esconder. Para que, ao vê-lo na pele de Michael Corleone, em The Godfather, não tentemos ver o violinista por trás do violino, para que os olhares dele para Diane Keaton não se misturem com as vezes que, ao pé dela, fechou e abriu os olhos, quando dormiam juntos na vida real.
O avô de Pacino perdeu a mãe aos quatro anos, na Sicília. A orfandade embarcou-o, com outros mil emigrantes, para a América. Viveu muitos anos. Estava a morrer, na cama, já americano, quando começou a falar siciliano com essa mãe que não chegara a conhecer. Numa cama americana, um avô e uma mãe morta falam siciliano. O happy end é uma forma de ressurreição. Europeia.
Ao volante do cabriolet, Pacino diz que tudo o que se faz é do europeu Shakespeare. Não lhe chegam os dedos de uma mão para mostrar a irrupção de Hamlet nos dois primeiros The Godfather. E que o rei Lear tomou conta de The Godfather, part III. Com o seu dinheiro pagou e dirigiu Looking for Richard, mergulho apaixonado no teatro shakespeariano: como interpretá-lo, como produzi-lo.
Não se fiem na condução europeia de Pacino. Um dia, na Costa Leste, despistou-se. Ficou no meio de uma tempestade de neve. Havia uma casa de família, seis filhos. Por sorte, a mulher era do Bronx e deixou-o entrar. Depois riu-se: “Quem diria que um dia teria o Al Pacino sentado no meu sofá, a ver comigo o Gary Cooper e o Fountainhead na tevê.”
As pessoas dizem que Pacino é o melhor actor vivo. “Não é justo – disse-lhe o amigo – talvez sejas melhor do que isso.”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Melhor definição já lida. Ele sempre foi “diferente” naquele ambiente ‘roliudiano’, nunca se desligou das raízes. Acontece muito com filhos de imigrantes, acho que ainda mais os latinos.
Obrigado pelo comentário Lilyane.
E agora para nos rirmos: Um tipo comer “pasta” com muito alho faz muita diferença. É uma pena o bacalhau não ter pegado em Hollywood – nós, os tugas teríamos nesse caso tido um grande sucesso.