O esqueleto de Lincoln já não deve estar em condições para levar ninguém às cavalitas. Mas em Lincoln, o corpo que Daniel Day-Lewis empresta ao presidente suporta bem, às cavalitas, o peso do filho, Tad.
É uma cena íntima num filme feito de boca colada à intimidade. Lincoln é um exemplo raro de Kammerspiel, drama de luz, psicologia e teatro. Desculpem se me exalto, mas em três semanas o cinema americano ofereceu, ao espectador que sou, o excelente Zero Dark Thirty e agora a obra-prima que é Lincoln, filme de câmara e mise-en-scène fordiana, de composição, cores e enquadramento que pedem a ressurreição de Robert Hughes, o melhor crítico de arte da América. A fotografia e parte da pintura americana do final do século XIX perseguiram a mesma intimidade, os mesmos interiores que a concepção visual de Lincoln transfigura em pura arte cinematográfica. Gosto dos filmes em que se pode viver e pode viver-se, com exaltação, ideal e sacrifício numa réstia de luz, nos círculos de fumo de Lincoln.
Volto à cena. Já a noite caiu lá fora, e Lincoln, despido da política esdrúxula, vai à procura do filho, que encontra a dormir no chão da sala, bizarras fotografias de escravos à volta. Lincoln, pai e pai apenas, numa solidão de Murnau, deita o corpo desajeitado ao lado do miúdo, acorda-o, põe-o às cavalitas e leva-o para a cama. Pai e filho fundem-se num só corpo, espécie de centauro doméstico, pacífico, de incomensurável gentileza.
Na obra de Spielberg em que a regra era a ausência e culpa do pai, esta é uma cena redentora, curva delicada de um corpo que carrega outro corpo, sem esforço, esquecido de si, consolado. Olhei bem e vi, e não me digam que não vêem também, que é Spielberg que vai às cavalitas de Lincoln. Depois confirmei. Spielberg, era ele miúdo, nunca perdoou ao pai o divórcio e o abandono da família. Durante décadas, nos filmes dele vimos pais ausentes, obcecados: as famílias dos filmes de Spielberg são vacas a que falta o rabo.
Agora, pai e mãe confessaram ao realizador a verdade. Não foi o pai que deixou a mãe, foi ela que se apaixonou por um amigo da família. O pai, num gesto altruísta, continuando a amar a mãe, reclamou para si todas as culpas do divórcio, protegendo mãe e filhos. Juntos, vieram contar a história ao “60 Minutes”.
Em Lincoln, Tad, o miúdo, cercado de fotografias e lanterna mágica, é um photomaton de Spielberg. Um cansaço confiante fá-lo dormir no chão porque o pai há-de vir buscá-lo. E pode invadir-lhe o gabinete, correr para ele, saltar-lhe para o colo, invadir-lhe os corredores palacianos com uma carroça puxada por um pónei. Que interessa que a América esteja em guerra, os homens conspirem e se matem? Grande e plácido como um lago, há um pai à espera de Spielberg.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Zero Dark Thirty, no Brasil A Hora Mais Escura.
A exaltação ao filme e seu diretor incita-me assisti-lo. Afinal Manuel abandonou os clássicos filmes do passado e escreve a respeito de um filme atual. Spielberg não é o mesmo de “Duel” mas continua um bom contador de histórias. Só Manuel conseguiu ver “äs vacas a que falta o rabo”.
Ah, ah, ah, Miltinho, mas eu gosto de muito cinema contemporâneo. Sobretudo quando os filme contemporâneos se parecem com os clássicos do passado.