Os trailers, as sinopses, hoje em dia, estão contando todo o filme. São spoilers – entregam o que o espectador não deveria saber, estragam o prazer, as surpresas que os criadores prepararam.
Esse fenômeno absurdo, grotesco, nojento, me assusta a cada dia mais.
Vi há pouco um filme extraordinário, impressionante, soberbo – Os Filhos da Meia-Noite/Midnight’s Children, de Deepa Mehta, baseado no segundo romance escrito por Salman Rushdie.
Depois do filme terminado, fui ver se havia algum especial no DVD. Tinha apenas o trailer. O trailer revela de cara um fato fundamental da história, um fato básico da história, mas que só é apresentado no filme quando estamos com exatos 38 minutos.
Ora, meu Deus do céu e também da terra, contar, já no trailer, a chave da história que só aparece quando o filme já está com mais de meia hora, quase 40 minutos, é um total absurdo.
É spoiler total.
E aí que me perdoem os cultivadores da castiça última flor do Lácio, inculta e bela, desde o perigosamente bocó Aldo Rabelo, que apresentou ridícula proposta de lei anti-estrangeirismos, até o muito mais simpático Ancelmo Goes, que sempre diz que qualquer palavra estrangeira é o cacete. Mas, cacete, como fazer com um termo como spoiler?
Não existe uma palavra na última flor do Lácio, inculta e bela, que expresse o que o termo spoiler significa.
Teríamos que inventar uma nova palavra, um novo termo: entrega-o que-não-pode-e/ou-não-deve-ser revelado-estraga-prazer.
Melhor usar spoiler. Perdão, Ancelmo.
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Me lembrei daquele quadro da velhíssima “A Praça é Nossa”. O sujeito sentava-se ao lado do outro, e contava sobre o livro que estava lendo. Contava tudo, detalhadamente. E, no fim, o outro dizia: mas por que que eu vou ler o livro agora, se você já me contou tudo?
É óbvio que um relato sobre uma história é diferente de ler a história no livro original, ou ver a história no filme. A história em si é uma coisa – a forma com que ela é contada faz toda a diferença.
Imagine-se uma sinopse de Dom Casmurro. Na verdade, imagine-se uma sinopse dessas que se fazem hoje em dia de qualquer romance de Machado. Seria tudo absolutamente grotesco, porque em Machado, muitíssimo mais que os fatos, o que importa é a forma com que eles são mostrados.
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O que tem acontecido com os trailers e as sinopses recentes é que eles são como as piadas que nós, brasileiros, fazemos sobre os portugueses. Há uma lenda urbana que diz que Psicose em Portugal se chamou algo do tipo A Mãe Era Ele. Quando eu estava no ginásio, brincava-se que Plein Soleil, no Brasil O Sol Por Testemunha, a transposição para o cinema de René Clément para o romance de Patricia Highsmith, em Portugal tinha um título do tipo E o Cadáver veio Amarrado à Hélice.
(Isso são lendas urbanas, são piadas de péssimo gosto. Plein Soleil em Portugal teve o título, apropriadíssimo, de À Luz do Sol. E Psycho em Portugal se chamou Psico. E aqui aproveito para dizer, embora fugindo do tema desta anotação, que os portugueses morrem de rir do título brasileiro para The Godfather, o de fato ridículo O Poderoso Chefão. Em Portugal The Godfather teve o título correto, O Padrinho – da mesma forma com que na Itália foi Il Padrino, na França Le Parrain, na Espanha El Padrino.)
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Mas o fato é que os trailers e as sinopses, inclusive as impressas nas capas dos DVDs, estão contando os segredos da trama!
OK: admito que o fenômeno não é novo. Todas as sinopses sobre Os Maias, de Eça de Queiróz, revelam estupidamente o que o gigantesco escritor só abre mesmo quando a narrativa do seu cartapácio já passou muito da metade, e quase se aproxima do fim.
Esse é um exemplo perfeito.
Quando terminei de ler o romance absurdamente fascinante de Eça, que dá imenso orgulho da língua em que fui nascido e criado, anotei:
Algo me choca profundamente com referência a Os Maias: muita gente se permite contar o que só é claramente revelado na página 785 do livro.
É muito doido, insano, maluco. O camarada escreve 785 páginas antes de revelar um determinado fato – e muita gente, mas muita gente mesmo, trata desse fato como se fosse a coisa mais normal. Basta dar uma olhada na internet, e praticamente todos os endereços que falam do livro contam o que Eça leva 785 páginas para contar.
É um crime, é um pavor, é um horror.
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Alfred Hitchcock, tão mestre do suspense quanto do marketing de si mesmo e de seus filmes, bolou um esquema vendedor para o lançamento de Psicose. A campanha de divulgação do filme pedia que ninguém entrasse no cinema depois que o filme tivesse começado – e que os espectadores não contassem para ninguém o fim da história.
Pois agora se faz o contrário: revela-se, no trailer, algo que só vai ser revelado para o espectador quando o filme está com 38 minutos.
Não me lembro, nem contei exatamente, mas creio que a cena do chuveiro de Psicose acontece por aí, uns 40 minutos de filme.
E se o trailer de Psicose dissesse: loura que roubou US$ 50 mil do patrão é assassinada no chuveiro do motel?
Pensando bem, poderia até ser um bom trailer. Porque o fato de a loura ser assassinada no chuveiro é o que menos importa, no suspense de Psicose.
Mas o fato que se revela em Os Filhos da Meia-Noite quando o filme está com 38 minutos não poderia, de forma alguma, estar no trailer do filme.
Não é, de jeito nenhum, algo que tenha a ver com suspense. É só que, se os segredos da história foram todos contados – como dizia o personagem da Praça é Nossa –, por que então vou querer ler o livro, ver o filme?
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Claro que a coisa da “Praça é Nossa” é uma brincadeira. Mesmo sabendo da história de um livro, até o fim, dá vontade de ver o filme baseado nele. No meu caso específico agora, o fato de ter visto o filme Os Filhos da Meia-Noite não me impede de querer ler o livro; ao contrário, agora tudo o que quero é ler o livro de Salman Rushdie.
Obviamente, um filme, um livro, são muito mais do que a história. Importa, e muito, e fundamentalmente, a maneira com que a história é contada.
Mas é preciso, acima de tudo, respeitar o leitor, o espectador.
Há gente que não se importa em saber informações sobre um filme antes de vê-lo. Tudo bem: cada um é cada um. Ou então, no dizer mais belo de Joan Manuel Serrat, “cada uno es como es, cada quien es cada cual’.
Até porque – pode-se argumentar em defesa dessas pessoas – é preciso saber um pouco sobre o que vai se ler, ou vai se ver. Há livros e filmes demais à nossa disposição, e então é preciso ter uma noção sobre do que se trata.
Parece que uma vez Mick Jagger disse que crítica de música não tem sentido, porque a música está de graça no rádio (ele falou isso antes de a música estar de graça na internet), e então cada pessoa pode julgar por si própria se quer comprar aquele disco ou não; não é necessário a intervenção de um crítico. Já sobre filmes, e especialmente espetáculos teatrais, cujas entradas custam muito caro, Mick Jagger dizia que é bom que haja críticos, para as pessoas poderem se decidir se é mesmo do interesse delas investir num ingresso algumas dezenas de dólares.
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Entendo perfeitamente esse ponto de vista.
Mas o fato é que há também gente que não gosta de saber muito sobre o que vai ver ou ler. Há quem goste de ser surpreendido pelos fatos que acontecem nas histórias.
E eles têm que ser respeitados.
Sou deste último tipo. Gosto de ler livros sem ter lido críticas sobre eles, e evito, cuidadosamente, ler as orelhas e a contracapa, porque elas costumam revelar fatos que só vão aparecer lá pela página 40, às vezes 100, às vezes até 300.
Exatamente da mesma maneira, gosto de ver filmes sem ter lido qualquer sinopse que seja. Tento nunca ler a sinopse na capa de um DVD.
Escolho o livro que vou comprar ou o filme que vou ver com base nos meus critérios – se conheço os nomes envolvidos, se alguém me recomendou, se simplesmente me deu vontade, ou até mesmo se vi pelos títulos que os jornais falaram bem.
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Mas então, se eu não gosto que me revelem fatos sobre os livros, os filmes, por que, então, cacete, tenho um site sobre filmes, onde boto looongas, intermináveis anotações sobre cada obra?
Ué – porque lê quem quer!
A rigor, a rigor, tenho um site sobre filmes porque gosto de escrever sobre filmes, e, se há tanto site sobre filmes, por que eu não poderia ter o meu?
A rigor, a rigor, boto minhas opiniões para serem lidas basicamente pelas pessoas que queiram checar o que os outros acharam dos filmes que elas acabaram de ver.
Depois de ler um livro, ver um filme, aí sim, quero ver o que outras pessoas acharam. Saber sobre outras opiniões, compará-las com as minhas.
Acredito que muita gente tenha exatamente o mesmo desejo.
Mas, nas minhas anotações, tento, ao máximo, não fazer spoilers. Tento não revelar o que acontece depois dos primeiros minutos de cada filme. E, quando é absolutamente necessário, boto avisos de que a seguir virão spoilers.
Assim: olha, aqui vão revelações sobre a trama. Se você não viu o filme, não leia a partir daqui.
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Os trailers e as sinopses estão indo cada vez mais na contramão disso que acho correto. Agora andam fazendo trailers longos, que contam praticamente toda a história do filme.
Isso é ridículo. Absurdo.
Os trailers, as sinopses de hoje são como o que diziam as piadas imbecis, ginasianas. A Mãe era Ele. E o Cadáver veio Amarrado à Hélice.
Tristes tempos.
Dezembro de 2013
Spoiler em português literalmente significa espoliador.
Os espoliadores são mais comumente procurados por fãs de uma obra após a sua apreciação inicial, muitas vezes servindo nessa perspectiva de obra complementar à original, permitindo a estes estender sua experimentação ligada a obra, ou ainda vivenciá-la de uma perspectiva levemente diferente daquela original.
Sou fã do SerVaz e do portuga Manuel S.Fonseca dois ótimos espoliadores.
Por tudo isso que o Sérgio refere trailers nunca vejo, fujo deles como o diabo da cruz; além de que a qualidade desses ditos seja (ao que dizem) cada vez pior, adoptaram a estética do video-clip e parece tudo igual.
Há um único (que me lembre) que vale a pena ver: precisamente um do Psico que é uma visita guiada ao cenário do filme pela mão de Hitchcock com muito humor negro e onde não se fica a saber nada do enredo. Vem numa edição em DVD e eu por acaso vi-o mesmo no cinema.