Mas o que raios, cacete, será que o Dylan quer dizer na letra de “Black Diamond Bay”?
Me fiz essa pergunta umas quatro ou cinco vezes, ao longo dos últimos meses, a cada vez que acontecia de tocar “Black Diamond Bay” no iPod.
E “Black Diamond Bay” é uma melodia maravilhosa, sensacional. É do disco Desire, de 1975 – na minha opinião, da melhor fase musical do cara, do som mais grandioso, redondo, gostoso, espetacular, a época em que ele teve a melhor backing vocal de sua imensa carreira, a de Emmylou Harris e o violino, ou rebeca, de Scarlet Rivera – um violinoextraordinário, sensacional, tão taquara rachada quanto a voz de Dylan e de Emmylou.
(Por algum motivo, o YouTube não tem a música com Dylan. O cover menos ruinzinho que achei foi este aqui. Esta a anos-luz do original, mas é o que há. Ah, mas o vemeo tem a versão original. Pode-se também comprar a canção no site oficial de Dylan, pela bagatela de US$ 0,99.)
A canção é maravilhosa, agitada, alegre, quase dançante – algo raro, mesmo naquela carreira sem igual de 50 anos e uns 50 discos.
E, quando me perguntava o que porra, caralho, ele queria dizer, não me referia ao sentido profundo, à mensagem maior. Não. Simplesmente eu queria entender quem é exatamente quem, no meio dessa imensa quantidade de personagens da história que ele criou na letra da canção.
Tudo bem, é um conto surreal, é um conto doidão, a letra de “Black Diamond Bay” – quase como se fosse uma reedição de “Desolation Row”, com a diferença de que o som é alegre, fogoso, quase dançante, e no fim o narrador vai pegar mais uma garrafa de cerveja.
Mas quem é quem? Quem são os personagens? Qual é a relação entre eles?
Resolvi tentar o improvável, o absurdo, o impossível: traduzir um Dylan.
Vamos lá.
***
Na varanda branca lá em cima
Ela usa uma gravata e chapéu panamá.
Seu passaporte mostra uma face
De outro tempo e lugar.
Ela não se parece nada com aquilo
E os remanescentes de seu passado recente
Estão espalhados ao vento bravo.
Ela caminha pela chão de mármore
Enquanto uma voz do salão de jogos chama por ela.
Ela sorri, anda para o outro lado
Enquanto o último navio parte e a lua desaparece
Da Baía do Diamante Negro.
Enquanto se abre a luz da manhã, o Grego desce
E pede uma corda e uma caneta que escreva.
“Pardon, Monsieur”, diz o homem da recepção,
Cuidadosamente removendo o gorro.
“Será que estou ouvindo direito?”
E, enquanto a névoa amarelada está se levantando,
O Grego se encaminha depressa para o segundo andar.
Ela passa por ele na escada em espiral
Achando que ele é o embaixador soviético.
Ela começa a falar, mas vai embora
Enquanto as nuvens de tempestade se erguem e os galhos de palmeira se curvam
Sobre a Baía do Diamante Negro.
Um soldado está sentado embaixo de um ventilador
Negociando com um homem pequenino que vende para ele um anel.
Raios iluminam o céu, a luz vai embora,
O homem da recepção acorda e começa a berrar:
“Você consegue ver alguma coisa?”
Aí o Grego aparece no segundo andar,
Descalço, com uma corda ao redor do pescoço
Enquanto um perdedor na sala de jogos acende uma vela,
E diz: “Abra um novo baralho”,
Mas o negociante diz “Attendez-vous, s’il vou plaît”,
Enquanto cai a chuva e os guindastes vão embora
Da Baía do Diamante Negro.
O homem da recepção ouviu a mulher rindo
Enquanto ele olhava em torno mais tarde e o soldado ficava bravo.
Tentou agarrar a mão da mulher,
Disse: “Aqui está um anel, custa milzão”.
Ela disse: “É pouco”,
E então correu para cima para arrumar as malas
Enquanto um cabriolé esperava junto do meio-fio.
Ela passou pela porta que o Grego tinha trancado
Em que um aviso escrito a mão dizia “Não perturbe”.
Ela bateu na porta assim mesmo
Enquanto o sol se punha e tocava música
Na Baía do Diamante Negro.
“Tenho que falar com alguém depressa!”
Mas o Grego disse: “Vá embora!”, e chutou para o chão
A cadeira, pendurado no candelabro.
Ela gritou: “Socorro, perigo,
Por favor abra a porta!”
Então o vulcão entrou em erupção
E a lava desceu da montanha lá em cima.
O soldado e o homem pequenino estavam agachados num canto
Pensando em amores proibidos
Mas o homem da recepção disse: “Acontece todo dia”,
Enquanto as estrelas caíam e os campos queimavam
Na Baía do Diamante Negro.
Enquanto a ilha afundava devagar
O perdedor finalmente quebrou a banca no salão de jogos.
O crupiê disse: “É tarde demais,
Você pode pegar seu dinheiro, mas não sei como
Você vai poder gastá-lo no túmulo”.
O homem pequenino mordeu a orelha do soldado
Enquanto o chão desaparecia e o aquecedor no porão explodia
E ela estava lá fora na varanda, onde um desconhecido dizia para ela:
“Minha querida, je vous aime beaucoup”.
Ela deixa cair uma lágrima e então começa a rezar
Enquanto o fogo arde e a fumaça vai embora
Da Baía do Diamante Negro.
Eu estava sozinho em casa uma noite em Los Angeles
Vendo o noticiário das 7 horas.
Parece que teve um terremoto que
Não deixou nada a não ser um chapéu panamá
E um par de velhos sapatos gregos.
Não parecia que estava acontecendo grandes coisas,
Então desliguei a TV e fui pegar outra cerveja.
Parece que toda vez que você chega por perto
Acontece outra história azarada que você vai ouvir
E não há nada que alguém possa dizer
E, de qualquer maneira, jamais planejei ir
À Baia do Diamante Negro.
***
Leio a tradução que fiz e fico pensando se não errei um punhado de coisas, ou se é isso mesmo.
“Ela”, a moça sem nome, a protagonista da trama, é uma mulher que às vezes passa pela vida do narrador e deixa ele tonto, zonzo, sonso, doidão, a imaginar histórias surreais?
Sei lá. Continuo sem entender bulhufas da história, seja em inglês, seja em português.
Mas é uma maravilha de música.
Vou ouvir de novo mais umas cinco vezes.
Fevereiro de 2013
Ah, sim: na tradução, deixei de fora, propositadamente, o pobre Walter Cronkite. Ele não tem nada que fazer numa tentativa de passar Dylan para o português.
Bob Dylan-Jacques Levy
Up on the white veranda
She wears a necktie and a Panama hat
Her passport shows a face
From another time and place
She looks nothin’ like that
And all the remnants of her recent past
Are scattered in the wild wind
She walks across the marble floor
Where a voice from the gambling room is callin’ her to come on in
She smiles, walks the other way
As the last ship sails and the moon fades away
From Black Diamond Bay
As the mornin’ light breaks open, the Greek comes down
And he asks for a rope and a pen that will write
“Pardon, monsieur,” the desk clerk says
Carefully removes his fez
“Am I hearin’ you right?”
And as the yellow fog is liftin’
The Greek is quickly headin’ for the second floor
She passes him on the spiral staircase
Thinkin’ he’s the Soviet Ambassador
She starts to speak, but he walks away
As the storm clouds rise and the palm branches sway
On Black Diamond Bay
A soldier sits beneath the fan
Doin’ business with a tiny man who sells him a ring
Lightning strikes, the lights blow out
The desk clerk wakes and begins to shout
“Can you see anything?”
Then the Greek appears on the second floor
In his bare feet with a rope around his neck
While a loser in the gambling room lights up a candle
Says, “Open up another deck”
But the dealer says, “Attendez-vous, s’il vous plait”
As the rain beats down and the cranes fly away
From Black Diamond Bay
The desk clerk heard the woman laugh
As he looked around the aftermath and the soldier got tough
He tried to grab the woman’s hand
Said, “Here’s a ring, it cost a grand”
She said, “That ain’t enough”
Then she ran upstairs to pack her bags
While a horse-drawn taxi waited at the curb
She passed the door that the Greek had locked
Where a handwritten sign read, “Do Not Disturb”
She knocked upon it anyway
As the sun went down and the music did play
On Black Diamond Bay
“I’ve got to talk to someone quick!”
But the Greek said, “Go away,” and he kicked the chair to the floor
He hung there from the chandelier
She cried, “Help, there’s danger near
Please open up the door!”
Then the volcano erupted
And the lava flowed down from the mountain high above
The soldier and the tiny man were crouched in the corner
Thinking of forbidden love
But the desk clerk said, “It happens every day”
As the stars fell down and the fields burned away
On Black Diamond Bay
As the island slowly sank
The loser finally broke the bank in the gambling room
The dealer said, “It’s too late now
You can take your money, but I don’t know how
You’ll spend it in the tomb”
The tiny man bit the soldier’s ear
As the floor caved in and the boiler in the basement blew
While she’s out on the balcony, where a stranger tells her
“My darling, je vous aime beaucoup”
She sheds a tear and then begins to pray
As the fire burns on and the smoke drifts away
From Black Diamond Bay
I was sittin’ home alone one night in L.A.
Watchin’ old Cronkite on the seven o’clock news
It seems there was an earthquake that
Left nothin’ but a Panama hat
And a pair of old Greek shoes
Didn’t seem like much was happenin’,
So I turned it off and went to grab another beer
Seems like every time you turn around
There’s another hard-luck story that you’re gonna hear
And there’s really nothin’ anyone can say
And I never did plan to go anyway
To Black Diamond Bay
Sérgio, só uma correção: o grego não pendurou nenhuma cadeira no candelabro. Na verdade, ele se enforcou. Subiu na cadeira, amarrou a corda no pescoço e no candelabro. Ao chutar a cadeira onde seus pés estavam apoiados, ficou pendurado com a corda amarrada no pescoço. Repare que o verso é “He hung there FROM the chandelier”. A descrição do suicídio começa quando ele pede uma corda e uma caneta – que pode ser para um bilhete de despedida, além do “Do not Disturb” na porta – e continua quando ele aparece no segundo andar descalço, com a corda no pescoço.
Eu arrisco um palpite: Dylan ouviu a notícia do terremoto na TV, do qual só restaram os misteriosos par de sapatos gregos e chapéu Panamá. Incomodou-se com o fato de que não houvesse nada mais que se pudesse dizer a respeito, nada sobre as histórias das pessoas que ali morreram (And there’s really nothing anyone can say). Cerveja vai, cerveja vem, ele deixou a imaginação preencher as lacunas entre os sapatos e o chapéu. Qual seria a história dos seres humanos envolvidos na tragédia?
Acho que a letra é principalmente uma crítica à nossa insensibilidade ao ver repetidamente esse tipo de notícia na TV e achar que nada de importante está acontecendo, só mais um terremoto com algumas mortes (Didn’t seem like much was hapening). Por que se importar? Afinal, a gente nunca pretendeu mesmo ir lá nessa Black Diamond Bay.
Será que as histórias dos personagens aparecem propositadamente truncadas para enfatizar a curiosidade dele sobre as vidas dessas pessoas, sobre as lacunas que nunca serão preenchidas?
De uma coisa eu tenho certeza: estou viajando assim na maionese devido ao sono, porque já são 04:58 da madrugada e eu ainda não dormi, tentando entender a bendita letra do Dylan.
Pô, Luiz Carlos, muitíssimo obrigado pela correção – sim, ele, o Grego, é que estava pendurado na cadeira, e chutou-a para se matar.
Sua interpretação é toda brilhante – em especial a coisa toda da crítica às notícias que banalizam as tragédias, e nossa insensibilidade diante das notícias de tragédias distantes de nós.
Um brilho! Obrigadíssimo.
Sérgio
Sérgio, acabei de encontrar na Wikipedia – http://en.wikipedia.org/wiki/Desire_(Bob_Dylan_album) o seguinte comentário sobre a música:
Black Diamond Bay
As described by Heylin, the “Black Diamond Bay” describes the destruction of a tiny island (following the eruption of a volcano), observed from two perspectives: from a hotel on the island itself and from the narrator’s point of view through a television news report. The song essentially describes what the people on the island are doing at the time – often drawing attention to the ironic futility of their actions (for example, one of the islanders is preparing to commit suicide when the volcano erupts and destroys the island). The song also describes the news-watcher’s indifference to the catastrophes he hears about on TV, as the narrator goes to get another beer rather than watch the news story about the catastrophe on the island. He says “I never did plan to go anyway to Black Diamond Bay.” Joseph Conrad’s Victory was a major influence to this song, which references many of its themes. The song title, the island, the volcano, the gambling, and the Panama hat are all references to Joseph Conrad’s Victory.
[edit]Sara.