O jornalismo humanista de Anélio Barreto

”Quem gosta de reportagem é repórter”. A frase, de um diretor de jornal neste século 21, procura demonstrar que o progressivo desaparecimento das grandes reportagens autorais no jornalismo contemporâneo corresponde a um crescente desinteresse dos leitores, que estariam preferindo se informar por meio de notícias curtas e “objetivas”, mesmo porque para a grande maioria das pessoas o tempo é cada vez mais escasso e não dá para ler textos extensos.

Nada disso é verdade, como prova o livro recém-lançado Histórias que os jornais não contam mais, do grande repórter e grande jornalista Anélio Barreto, com reportagens que publicou em seus quarenta anos de carreira, de 1968 a 2008, lançamento da Belaletra Editora. O maior marco de sua carreira foi a permanência no Jornal da Tarde de São Paulo na grande fase – exatamente a fase das grandes reportagens de interesse humano – desse vespertino inovador cuja extinção perto do Dia de Finados do ano passado foi um dos registros salientes da crise do jornalismo impresso.

zzzzzzzzABEstá aqui toda a série das célebres reportagens da Anélio Barreto sobre o rumoroso crime da rua Cuba, quando um casal de classe alta dos Jardins foi assassinado e o filho foi considerado o principal suspeito. Ao contrário do que acontece hoje, quando, repetindo os inícios do jornalismo moderno na passagem do século 19 para o século 20, os repórteres policiais são mais exatamente noticiaristas, isto é, reproduzem boletins de ocorrência, textos de inquéritos e declarações de delegados, investigadores e promotores, Anélio Barreto fez uma grande investigação por conta própria, tendo por exemplo descoberto que o filho sabia o calibre das balas que tinham vitimado seus pais, antes de a perícia ter dado a público de que calibre eram os projéteis assassinos.

E mais: Anélio Barreto, na série sobre o crime da rua Cuba, não se limitou a descrever fatos “objetivos”. Ele praticou o que podemos chamar de jornalismo humanista, fazendo perfis psicológicos, emocionais e comportamentais das pessoas relacionadas com o crime, e além disso descreveu os ambientes em que as cenas ocorreram, desde o quarto do casal assassinado até os jardins em volta da mansão. Aqui está o grande jornalismo da grande época dessa profissão, quando foi reconhecido como gênero literário específico até mesmo por eminentes intelectuais como Alceu Amoroso Lima, também conhecido como Tristão de Athayde, e por poetas como Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. Como gênero literário específico, o grande jornalismo se caracteriza, como um romance, pela beleza e emocionalismo do texto e pela capacidade de envolver o leitor, levando-o sempre a se interessar em se aprofundar na leitura; por outro lado, o grande jornalismo, também como gênero literário específico, se aproxima do trabalho dos historiadores, pois respeita escrupulosamente os fatos reais tal como se sucederam e tal como podem ser apurados, documentados e checados.

Além da série sobre o crime da rua Cuba, um dos pontos mais altos do jornalismo brasileiro da segunda metade do século 20, temos no livro de Anélio Barreto reveladores perfis do cantor Frank Sinatra aos 80 anos e de Dilma Rousseff como ministra do governo Lula, além do jovem assassino do estilista Gianni Versace, entre outras reportagens de grande repercussão.

Não há como não concordar com o que diz o prefácio de Sandro Vaia, outro grande jornalista que foi alto executivo do Grupo Estado: “O título do livro de Anélio Barreto pode servir como um epitáfio aos jornais que agonizam e ao mesmo tempo como um diagnóstico das razões dessa agonia: morrerá mais rapidamente quem esquecer que a essência mesma do jornalismo é contar – e contar bem – boas histórias, com começo, meio e fim. Se não existe mais espaço nos jornais para reportagens como as que este livro reúne, pior para os leitores. E se é pior para os leitores, é pior para os jornais. Quando eles se derem conta de que estão cada vez mais substituindo a narrativa de assuntos de interesse humano pela redundância da informação plana, rala, rasteira, e sem o valor agregado da argúcia, da capacidade de observação, da inteligência e do talento narrativo já pode ser tarde demais.”

(*) Renato Pompeu é jornalista.  Dos melhores que há. 

Este texto foi originalmente publicado no Diário do Comércio, em 27/8/2013. 

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