“Pode uma nação que arrota compreender uma nação que canta?” A lamúria é de um italiano, o general Sebastiano, a quem o germânico marechal-de-campo Erwin Rommel, acaba de proibir que cante as amadas árias, de Puccini ou Verdi. Estão os dois no meio de uma triunfal campanha, a matar ingleses como quem mata moscas, num filme do austríaco Billy Wilder.
Five Graves to Cairo começa num deserto de Dom Sebastião, no Norte de África da II Guerra. Um tanque rasga as areias, sobe e desce dunas. Há qualquer coisa de bizarro nesse carro de combate veloz e perdido. O homem na torre do tanque é um homem desalinhado. Está tão morto como o revolucionário Marat na bem pintada morte que Jean-Louis David lhe pintou. É belo e exaltante ver um tanque a riscar a imensidão do Sahara. O morto salta com os balanços. Será que vai cair?
O cinema, como o teatro, é uma coisinha de três actos. Wilder sempre disse que quando um tipo começava a andar às voltas com o terceiro acto, é porque já tinha sérios problemas com o primeiro. Five Graves to Cairo tem um esplêndido primeiro acto. Vemos esse tanque de guerra inglês conduzido por um morto. A câmara de Wilder entra, a seguir, no habitáculo. Mais mortos lá dentro. Corpos no vaivém frenético que as dunas forçam. Um corpo menos morto acorda do desmaio, o único sobrevivente. Salta do tanque, deambula pelo deserto e acaba, alucinado, num hotel em ruínas, nos braços do dono egípcio e de uma criada francesa.
Um minuto depois, chega Rommel e os seus vitoriosos alemães. De Rommel vemos o pescoço enérgico, a cabeça rapada. São o pescoço e a cabeça rapada de Eric von Stroheim. O sobrevivente inglês, escondido, olha, como o espectador, para essa carne sólida e saudável. Rommel dá ordens breves e alemãs. É de certeza a sua voz, porque as orelhas dele, destacando-se da nudez do pescoço, movem-se ao ritmo do que ouvimos. Não há, no cinema, nuca mais expressiva.
Não nos cheira que o sobrevivente vá sobreviver muito mais. Um segundo e os alemães vão descobri-lo. Basta que arrastem, como se preparam para fazer, o balcão do recepcionista. É agora: arrastam-no e, surpresa, o inglês já lá não está.
Nesse chiaroscuro do cinema americano dos anos 40, a mando da Paramount, Wilder desenhou, a golpes de surpresa e humor, a estratégia que Spielberg seguiu nos Indiana Jones. Um herói solitário, um amigo egípcio, a mulher autónoma e certa em lugar errado, os nazis arqueologicamente necrófilos.
Era a primeira vez que o realizador dirigia Stroheim. Quando ele chegou, Wilder veio a correr e desfez-se em elogios: “Que honra, que honra, trabalhar com quem está dez anos à frente de todos, à frente da indústria.” Sem falsas modéstias, Stroheim, já pescoço e cabeça de Rommel, corrigiu-o: “Vinte!”
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Five Graves to Cairo no Brasil é Cinco Covas no Egito.
Falar de cinema depois de Manuel é estar 10 anos atrás, corrigindo, 20 anos.
Manuel vê um filme como realizador, vê detalhes que ninguém vê, a nuca expressiva de Eric von Stroheim é a prova.
“Five Graves to Cairo” é outro filme, pelas lentes do Manuel.
Ora Miltinho, tenho um sem pescoço de touro portugês. E estou com uma degenerescência retiniana que em vez de 20 anos à frente, só me deixa olhar para 20 anos atrás. Um abraço
Ao cérebro faz falta retinas, pior aqueles a que as retinas são cegas pelo cérebro.