Patrícia Nogueira Rocha, tradutora, viajada, gosta de morar na Avenida Paulista. Está no olho do furacão. A Parada Gay parte a um quarteirão de seu apartamento. O show do réveillon acontece do outro lado, a meio quarteirão. “O som é muito alto, os vidros da janela vibram, parece que vão estourar.” Mas, como escolheu viver aqui, não se importa. “Faz parte do pacote.”
Nas últimas semanas, o pacote incluiu grandes manifestações. O som foi de gritos, bombas estourando. Houve choque com a polícia, violência, vandalismo que destruiu e incendiou. Desta vez Patrícia preocupou-se. “Atacaram o metrô, eu não sabia o que era.” Mas depois entendeu o verdadeiro movimento, diz, e o assimilou.
A tradutora é uma entre as 5 mil pessoas que vivem na avenida mais importante do País. Está entre o 1,5 milhão que, diariamente, a pé, de metrô, ônibus, passa por seus 2.800 metros. O IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, mostra que a região da Paulista é um bom lugar para se viver. Ocupa o 4º lugar no índice, entre os 96 distritos paulistanos.
Na avenida estão grandes federações, empresas multinacionais, bancos, consulados de 21 países, sem se falar no Museu de Arte de São Paulo, Masp, em livrarias e na gastronomia. Se há um problema – e há – é que o lugar se transformou em uma grande vitrine. A maior caixa de ressonância da cidade.
De modo que, na segunda-feira cedo, quando o DC chegou à avenida, ouviu a estridência de apitos e buzinas vindos do vão livre do Masp. Um pequeno grupo, menos de 30 pessoas, protestava não contra a PEC 37, que tirava poder dos promotores públicos, e foi sepultada; mas contra o PL 282.
O Projeto de Lei, recém aprovado pelo Senado, regulamenta o exercício da Medicina. Profissionais de outras áreas, como enfermagem, se acham prejudicados. O grupo ocupava uma pista da Paulista, quando o sinal de pedestres abria. Depois, refluía para o vão. A alguns metros dele, um mendigo dormia sobre o piso, enrolado em um cobertor, cercado por pombas – igualmente alheias à barulheira. Ao fundo, um casal se beijava.
Estes sons não atravessaram os vidros das janelas de Patrícia, a tradutora, no terceiro andar. Mas quando há uma passeata grande, com gritos, palavras de ordem, é diferente. “As vidraças não seguram o barulho da multidão”, ela diz.
Os hábitos da tradutora facilitam sua vida. Não tem carro, anda de metrô e táxi. Seus vizinhos que usam carro ficam sem poder sair do prédio, ou entrar, nas horas de agitação. Patrícia tem suas táticas para momentos em que a Paulista fica inacessível a táxis, e o metrô fecha.
Elementares, é verdade; mas agradáveis. Estava em Santo Amaro quando soube que a avenida vivia um momento daqueles, em um dos primeiros dias de manifestações. “Fui para um bar com amigos.” Só quando a situação acalmou, pegou seu táxi.
Convive bem com as agitações e o barulho da Paulista, baseada em preceitos lógicos. “Se a pessoa escolheu morar aqui, não quer barulho, mas ele acontece, que saia fora, vá viajar.” Outra coisa: “Se alguém vem morar aqui em busca de tranquilidade, veio para o lugar errado. Isso não tem mesmo”.
O que ajuda Patrícia é que seu pai, Sebastião Rocha Filho, foi metalúrgico na Volkswagen e sindicalista. “Minha família não tem aversão a protestos, vivemos muito isso.” Em todo caso, admite que poderia desistir do endereço. “Se isso tudo se tornasse permanente, eu me cansaria.”
Franklin Stefanelli, administrador de empresa, tem hábitos diferentes dos de Patrícia. Usa o carro para tudo. O que faz é adaptar-se à situação. “Vai ter manifestação, mudo compromissos, como a aula de inglês.” Também calibra o horário para sair ou chegar em casa.
“Se for o caso, pego o metrô.” E se tiver sido fechado? “Posso descer para a São Carlos do Pinhal ou a Alameda Santos (ruas imediatamente paralelas) e usar um táxi.” Nesses momentos, o trânsito nas paralelas se complica, admite; mas “apenas um pouco mais que o normal”.
Em dias de manifestação, ou de eventos como a festa do réveillon, os amigos “aproveitam o camarote”. Mas com atitudes diferentes. No primeiro caso, ajudam a pendurar na janela uma toalha branca, ou um pisca-pisca de lâmpadas – sinais de apoio. No réveillon, vão não só os amigos como a família. Desfrutam do privilégio da virada do ano com show ao vivo.
Por estas coisas, Franklin tem a mesma reação de Patrícia: “Quem optou por morar na Paulista sabe de tudo isso. Os que reclamam só têm uma coisa a fazer, mudar”.
A ação dos vândalos, é verdade, trouxe prejuízos para o metrô, bancos e casas de comércio. A Associação Paulista Viva teve dez cabines danificadas, três delas destruídas pelo fogo. As cabines são usadas por policiais militares.
“A Paulista é palco de manifestações desde que eu moro aqui, há 40 anos”, diz a diretora-executiva da associação, Marly Lemos, instalada em uma travessa, a Bela Cintra.
Acha que vive na melhor região da cidade. “Tem tudo o que se precisa, e bem perto. Não precisamos usar o carro.” Quanto às manifestações (não condenadas pela associação), “não impedem ninguém de dormir, acabam cedo”.
Agitações à parte, a associação criou um projeto para reforçar a segurança na avenida. Previa a instalação de câmeras em toda a extensão, com imagens transmitidas para uma central de monitoramento, nas 24 horas. Mas desistiu, devido ao alto custo.
Esta reportagem foi originalmente publicada no Diário do Comércio.
Excelente texto! Muito boa a reportagem.Valdir Sanches é um craque da pauta. A histórica, lendária, pujante avenida merecia este destaque.
Miltinho
Agradeço por suas palavras. A sensibilidade e o interesse do leitor são nosso maior trunfo, quando publicamos uma reportagem.