– “É assim mesmo. Os mais novos chegam e demitem os velhinhos. Nós mesmos fizemos assim quando tomamos o Jornal do Brasil.”
A frase foi dita pelo poeta Ferreira Gullar no dia em que foi demitido do Estadão.
O grande poeta levava vida mansa na Sucursal do Rio do jornalão.
Sua função era copydeskar os textos da Sucursal feitos especialmente para o Jornal da Tarde.
É preciso explicar: copydesk era o termo usado para o jornalista que, num passado hoje remoto, dava a forma final aos textos dos repórteres. Nada a ver com o revisor. O copy era um redator – ele reescrevia o que os repórteres escreviam. Tinha autoridade para mexer inteiramente no texto. Muitas vezes, por exemplo, o repórter colocava no meio do texto uma informação fundamental, e cabia ao copy trazer a informação para o alto da matéria.
Naqueles tempos muito antigos, o revisor apenas revisava – verificava se havia erros de Português e de lógica.
O termo copydesk, copiado do jornalismo americano, sumiu na poeira do tempo. Quando eu frequentava diariamente redação antes de aposentar – exatamente a do Estadão –, ninguém mais falava copydesk. Usava-se fechador. Tudo havia se tornado muito mais rápido, e os fechadores poucas vezes tinham tempo de reescrever um texto troncho mandado às pressas pelo repórter. Sobrava para eles apenas a tarefa de corrigir os erros mais absurdos, e acrescentar alguma contextualização para que o leitor pudesse entender melhor o texto.
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Era preciso dar essa contextualização antes de contar a história do poeta Ferreira Gullar.
Então o poeta “trabalhava” (entre aspas, porque o verbo não corresponde à verdade dos fatos) na Sucursal do Rio como copydesk dos textos enviados especialmente para o Jornal da Tarde.
Acontece que pouquíssimos textos da Sucursal do Rio feitos especialmente para o JT precisavam de copydesk. Tudo seria mesmo reescrito na redação em São Paulo.
A rigor, a rigor, a bem da verdade, o que o poeta tinha era uma sinecura, e não propriamente um trabalho.
Em palavras mais claras, o poeta não fazia porra nenhuma.
Não fazia porra nenhuma para o jornal que pagava seu salário, é claro. Na prática, usava a Sucursal do Rio como seu escritório. Tinha sua mesa, telefone, os serviços de secretárias e contínuos à sua disposição. Dava entrevistas, dava seus telefonemas, talvez tenha escrito um ou outro poema na Olivetti do jornal – e ainda recebia salário por isso.
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Em 1988, mudou tudo.
Rodrigo Mesquita assumiu a Agência Estado. Resolveu transformar a até então indolente, preguiçosa Agência Estado em alguma coisa útil, ágil, esperta, lucrativa.
Por questões trabalhistas, legais, as sucursais do Estadão país afora pertenciam à Agência Estado.
E então, numa fúria danada, a Agência Estado se meteu a mexer nas estruturas até então sonolentas, parecendo empresa estatal, das principais sucursais.
First we take Manhattan, then we take Berlin, diz outro poeta, o canadense Leonard Cohen.
O estrategista Rodrigo resolveu fazer diferente. Antes de tomar Brasília, a capital, a principal, a maior das sucursais, tomaria o Rio. Faria na segunda maior sucursal o ensaio geral do que seria a tomada da maior de todas.
A tomada da Sucursal do Rio foi uma aventura. Mereceria um texto específico – mas este texto aqui é apenas sobre o grande poeta Ferreira Gullar.
Tentando contar em poucas palavras a aventura: viajamos cedinho numa segunda-feira num avião da ponte aérea, e invadimos a redação da Sucursal do Rio, sei lá, antes das 10 da manhã. A tropa de assalto era formada por Rodrigo Mesquita, o dono, o patrão, seus auxiliares mais próximos (Sandro Vaia, Elói Gertel, Júlio Moreno e eu) e uma turma de repórteres do Estadão escalados pelo então diretor de redação, Augusto Nunes, e, last but not least, o Seu Expedito, o cara do Departamento de Pessoal. (Naquele tempo, 1988, ainda não havia essa coisa chamada RH.)
Rodrigo, Sandro e Elói ocuparam a sala do diretor de redação e iam chamando os caras indolentes, sonolentos, preguiçosos, acomodados, que seriam demitidos. Davam a eles a notícia da demissão, e Seu Expedito, expeditamente, sacramentava a demissão.
Ao Júlio Moreno, a mim mesmo e aos repórteres invasores, cabia a função de tocar o dia-a-dia da Sucursal até a posse da nova chefia – Ricardo Boechat e Aloísio Maranhão.
Dos, sei lá, 40, 50 jornalistas da Sucursal, ficaram oito.
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O grande poeta Ferreira Gullar foi um dos 30, 40 demitidos.
Eu não ouvi, mas o Sandro disse ter ouvido a frase dele para um amigo:
– “É assim mesmo. Os mais novos chegam e demitem os velhinhos. Nós mesmos fizemos assim quando tomamos o Jornal do Brasil.”
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Há muito tempo queria contar essa historinha. Acho uma delícia de historinha, cujo centro, fulcro, é a frase do grande poeta, um dos homens mais lúcidos deste país naquela época e também hoje. Além de poeta de primeira grandeza, Ferreira Gullar é um ser político pensante. Ex-comunista, é hoje um crítico ferrenho do estilo lulo-petista de governar e se apoderar do Estado.
Resolvi finalmente contar a historinha por uma coincidência fortuita.
Na próxima segunda-feira, dia 17, será lançado o livro Armênio Guedes – Sereno Guerreiro da Liberdade. O livro conta a trajetória de Armênio, hoje com 95 anos e lúcido como poucos, um comunista de carteirinha desde sempre, que, ao contrário de tantos esquerdóides descerebrados, como os que ocupam hoje alguns dos mais importantes gabinetes da República, soube mudar de posição à medida em que o mundo mudava. Um companheiro de Luiz Carlos Prestes que, ao contrário dos stalinistas, soube evoluir, crescer.
Armênio Guedes – Sereno Guerreiro da Liberdade, da editora Barcarolla, tem prefácio do grande poeta Ferreira Gullar. E é assinado por Sandro Vaia, o cara que, em 1988, quando achávamos que estávamos tomando o Rio, ouviu do poeta a frase perfeita.
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A tragédia é ver que, em 1988, tomava-se de ataque uma sucursal preguiçosa, acomodada, para instalar ali um grupo de jornalistas atuantes, trabalhadores, produtivos, e hoje demitem-se jornalistas atuantes, trabalhadores, produtivos, porque as empresas não têm mais como pagar seus salários.
Talvez os petistas não precisem, afinal de contas, encontrar meios de censurar o que eles chamam de a grande imprensa burguesa.
A própria grande imprensa está se encarregando de se destruir.
Junho de 2013
Sérgio: 1 – Acho que a agência podia ter posto o poeta para trabalhar, dando-lhe uma coluna no Estadão, como tem hoje na Folha. O problema estaria solucionado e o leitor, agradecido.
2 – Bom esclarecer que os textos produzidos pela sucursal eram publicados no Estadão, para o qual se destinavam. E reescritos no JT, para não ficar repetição, e principalmente porque o JT tinha estilo próprio e de qualidade quase literária.
Em palavras mais claras, o poeta não fazia porra nenhuma.
Resolveram transformar a até então indolente, preguiçosa Agência Estado em alguma coisa útil, ágil, esperta, LUCRATIVA.
Conseguiram?
E o poeta, hoje faz alguma coisa?
Algumas organizações jornalísticas não lucrativas nos Estados Unidos já alcançaram reconhecimento profissional, quebrando o preconceito contra formas alternativas de produzir notícias. É o caso do projeto Pro Publica, formado por um consórcio de jornalistas profissionais que já conquistaram dois prêmios Pullitzer (o maior prêmio da imprensa norte-americana) por jornalismo investigativo e reportagens especiais. Pro Publica se propõe a fazer um jornalismo de interesse público sem abandonar os critérios profissionais tradicionais para mostrar que é possível pagar salários e despesas operacionais sem ter lucro.