Ainda por cima inventamos o Natal

zzsaaraMarcelo CarnavalOGlobo

Como se não bastasse tudo o mais, ainda por cima inventamos o Natal.

Como se não bastassem o câncer, a aids, o enfarte, a proibição de fumar, de beber, de comer sal, gordura, tudo o que tem gosto e dá prazer. A dor de dentes, a dor nas costas, a hipertensão, o triglicérides, o colesterol, a miopia, o astigmatismo, o enfisema, o glaucoma, a hemorróida, a herpes.

Como se não bastassem a má distribuição das riquezas, a nojenta existência de milionários, a maldita existência de miseráveis, o capitalismo, a competição, a inveja, o mau caratismo, a sem-vergonhice, o chefe pentelho, o subalterno preguiçoso ou inepto.

Como se não bastassem Napoleão, Stálin, Hitler, Mussolini, Fidel, Chávez, Evo, Lula, Marco Aurélio Garcia, Marta Suplicy, José Genoíno, Sarney, Jáder, Roriz, Bush, Thatcher.

Como se não bastassem o analfabetismo, a ignorância, a falta de hospitais decentes, de escolas, de professores preparados, a violência nas ruas, o gangsterismo, o crime organizado, o crime desorganizado, os assassinos em série, os assassinos de pai e mãe, os assassinos de filhos.

Como se não bastassem as enchentes, as secas, os terremotos, os tsunamis, os vulcões.

Como se não bastassem as desilusões, o amor que de repente não é mais o mesmo, os desencontros, a traição, a infidelidade, o ciúme, o sentimento de posse, a impaciência, a vontade de quebrar a rotina, a vontade de manter a rotina, a desconfiança, o temor, a dor, a angústia, a pata de elefante em cima do peito, a saudade, a falta, a constatação de que acabou. A preocupação com o filho, o medo, a possibilidade de não dar certo, o filho que, pronto, já não deu certo mesmo, e agora, fazer o quê?

Como se a vida fosse doce e mansa e tediosa como num filme sueco, como se não houvesse problema algum, aí inventamos o Natal, pra deixar todo mundo mais tenso, estressado, nervoso, na correria, na pressão – tem que encontrar fulano, tem que encontrar sicrano, tem que dar presente para este, este, este, este e aquele.

Enchem-se todos os lugares de luzinhas, bonitinhas, bonitinhas, que decuplicam o consumo de energia e portanto aceleram o desperdício dos recursos naturais e nos leva mais rapidamente ao esgotamento do planeta.

As ruas, as lojas, os ônibus, o metrô, tudo fica absurdamente abarrotado de gente exausta, trôpega, zonza que nem barata. Os bares, sobretudo, os bares se enchem de amadores, com uma infinita obrigação de parecer feliz, que falam alto, berram, e no final da noite assassinam “Carinhoso”.

A proximidade do Natal sempre me leva a achar que têm razão os que dizem que a humanidade é uma experiência que não deu certo.

Este texto é de 2010. Mas fica atual todo ano. 

A foto é Marcelo Carnaval, Agência O Globo.

20/12/2013

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