Após muito tempo longe, o homem reencontra seu antigo amor, e diz a ela que, nas terras por onde andou, poderia ter-se casado com a filha do rei. Mas não quis, recusou – porque quer mesmo é ela, seu velho amor.
E então ela responde que, pô, cara, que pena que você não se casou com a filha do rei, porque eu casei com um carpinteiro e estou muito feliz.
Ouvi essa história quando era garoto, me impressionei profundamente com ela, e acho que, de alguma forma, devo a ela um pouco do que sou.
Há uma outra história de que volta e meia me lembro, esta acontecida comigo.
Tinha 18 anos, acabava de chegar a São Paulo, pobre de marré de cy, e um dia o João Hélder, que, para os meus padrões de imigrante recém-chegado, sem eira nem beira, parecia um milionário, me deu carona no que me parecia um carrão para voltar da Casa Verde, onde eu tinha ido encontrar as irmãs da namorada do meu irmão Geraldo e sua turma.
Tocou uma música dos Beatles no rádio do carro, e o João disse que gostaria de ter um décimo do que eles tinham. Fiquei pensando a que ele se referia. Ao talento, de uma maneira geral? À capacidade de expressar o que a juventude do mundo inteiro sentia? À beleza das melodias? Às letras, que estavam ficando cada vez mais inteligentes, adultas?
Acho não respondi nada. Aos 18 anos, da mesma maneira que até hoje, me sentia um tanto tímido diante das pessoas que não conhecia bem.
Daí a pouco, talvez para preencher o silêncio, o João completou seu pensamento. Disse algo assim: Pô, se eu tivesse um décimo do dinheiro que eles têm…
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Aos 18 anos, eu era incapaz de pensar nas coisas que os Beatles tinham em termos de grana acumulada.
Muito provavelmente foi em parte por ter ouvido tantas vezes a história da mulher do carpinteiro que minha escala valores privilegia coisas mais sérios, mais importantes do que dinheiro.
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A história vem numa canção folk, “The House Carpenter”. Joan Baez a gravou em seu terceiro disco, lançado em 1963 pela Vanguard. Nas liner notes, o texto da contracapa, de seu primeiro disco, de 1960, ela dizia que se acompanhava com o violão, “sua única e fiel orquestra”. Há pouquíssimas verdades absolutas, e a gente jamais deveria dizer desta água não beberei – daí a poucos anos Joan Baez passaria a se acompanhar por diversos outros instrumentos, assim como fizeram todos os cantores compositores filhos do boom do folk do final dos anos 50, início dos 60. Mas aí estou tergiversando.
Bob Dylan gravou “House Carpenter” (assim, sem o artigo) no dia 19 de março de 1962. Foi quando estava gravando as músicas para seu segundo disco, The Freewheelin’ Bob Dylan – o disco que tem uma absurda quantidade de canções extraordinárias, e que iniciou sua transformação em fenômeno mundial. “House Carpenter” acabaria ficando de fora do disco, e foi uma decisão sábia. Em Freewheelin’ praticamente não há canções verdadeiramente folk, tradicionais, de autoria desconhecida – quase todas são composições do próprio cara.
A gravação que Dylan fez de “House Carpenter” nos estúdios da Columbia em Nova York em 1962, enquanto preparava seu segundo álbum, só apareceria em um disco oficial em 1991 – The Bootleg Series volumes 1-3 (rare & unreleased) 1961-1991.
A versão de Joan Baez (ei-la no YouTube) vem com a limpidez, a cristalinidade da voz dela. A versão de Dylan (ei-la no Vimeo) vem com a taquara-rachadez, a força estúpida da voz dele.
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Não é uma história de amor feliz, a de “House Carpenter”. Há pouquíssimas histórias felizes nas folk songs – as folk songs em geral falam de tragédias, crimes, traições, infidelidade, roubos, prisões.
A moça que estava casada com o carpinteiro, e se dizia feliz, acabará seduzida pelo velho amor que reapareceu na vida dela. Abandonará o marido, e fugirá com o amante em um navio… que acabará afundando, e os dois morrem conscientes de que não vão para o Céu, e sim para o inferno. (A letra vai abaixo deste texto.)
O que me fascina mais nessa canção não é o final trágico reservado aos amantes. Me fascina que, embora por um momento, a mulher tenha preferido ser feliz com o carpinteiro.
“House Carpenter”, como a maioria das folk songs – canções sem autor identificado, que eram cantadas na Inglaterra, na Irlanda, na Escócia, e foram sendo transmitidas oralmente de geração em geração, e levadas pelos imigrantes para a América –, mostra os valores morais que prevaleciam no século XVII.
Me fascina o entendimento que as pessoas naquele mundo anglo-saxônico tinham no século XVII a respeito do fosso entre as classes sociais.
Todos nós aprendemos que no Brasil temos uma cultura bacharelesca herdada de Portugal. Como fomos criados por ibéricos católicos, damos maior valor às atividades “intelectuais” diante das braçais.
As canções folk mostram que esse mesmo antagonismo existia também entre os protestantes anglo-saxões. Mestres em distinção de classes, os ingleses cantavam em suas canções que os carpinteiros eram, de alguma maneira, inferiores.
Isso transparece até na canção em que a moça se sente orgulhosa e feliz por ter-se casado com o carpinteiro.
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No início dos anos 60, quando surgiram os grandes filhos do folk, um deles, Tim Hardin, explicitou o que, afinal, é o abismo social entre os que trabalham com as mãos e os que não sabem fazer nada de útil com elas.
If I were a carpenter
And you were a lady,
Would you marry me anyway?
Would you have my baby?
If a tinker were my trade
would you still find me,
Carrying the pots I made,
Following behind me.
Para que não haja dúvidas: Se eu fosse um carpinteiro, e você fosse uma dama, você se casaria comigo assim mesmo? Teria o meu filho? Se eu fosse um funileiro, você me encontraria? Carregando os potes que eu fiz, você me seguiria?
Há diversas gravações de “If I were a carpenter” no YouTube. A de Johnny Cash e June Carter Cash é linda; há uma gravação do próprio Tim Hardin, aparentemente num programa de TV. Tem até um cover feito pelo Led Zeppelin! (Olá, Carlos Bêla: você conhecia isso?) A gracinha da Alison Krauss cantou a música em um show ao lado de Dwight Yoakam, em h0menagem ao casal Johnny & June.
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Violeta Parra cantou os estudantes: “Que vivan los estudiantes, / Jardín de nuestra alegría, / Son aves que no se asustan / De animal ni policía”.
Eu também gosto dos estudantes – dos que estudam, não dos que faltam às aulas.
Mas tenho, sempre tive, imenso respeito pelas pessoas que trabalham com as mãos – os carpinteiros, os marceneiros, os eletricistas, os bombeiros, todas aquelas pessoas que dominam um conhecimento que eu e você não dominamos.
Acho que, do meu socialismo juvenil, sobrou, em especial, o entendimento de que o trabalho das mãos é tão importante quanto o do cérebro. Ou mais.
Na verdade, acho que o trabalho das mãos deveria ser mais bem pago do que o que o feito pela cabeça.
Questão de mercado. Há hoje mais gente hoje ganhando a vida com a cabeça do que com as mãos. Então quem trabalha com as mãos vale mais.
Fevereiro de 2013
House Carpenter
(Trad. A letra abaixo é a versão gravada por Bob Dylan.)
Well met, well met, my own true love
Well met, well met, cried she
I’ve just returned from the salt, salt sea
And it’s all for the love of theeI could have married a King’s daughter there
She would have married me
But I have forsaken my King’s daughter there
It’s all for the love of theeWell, if you could have married a King’s daughter there
I’m sure you’re the one to blame
For I am married to a house carpenter
And I’m sure he’s a fine young manForsake, forsake your house carpenter
And come away with me
I’ll take you where the green grass grows
On the shores of sunny ItalySo up she picked her babies three
And gave them kisses, one, two, three
Saying “take good care of your daddy while I’m gone
And keep him good company.”Well, they were sailin’ about two weeks
I’m sure it was not three
When the younger of the girls, she came on deck
Sayin’ she wants company“Well, are you weepin’ for your house and home?
Or are you weepin’ for your babies three?”
“Well, I’m not weepin’ for my house carpenter
I’m weepin’ for my babies three.”Oh what are those hills yonder, my love
They look as white as snow
Those are the hill of heaven, my love
You and I’ll never knowOh what are those hills yonder, my love
They look as dark as night
Those are the hills of hell-fire my love
Where you and I will uniteOh twice around went the gallant ship
I’m sure it was not three
When the ship all of a sudden, it sprung a leak
And it drifted to the bottom of the sea***
If I were a carpenter
(Tim Hardin)
If I were a carpenter
If I were a carpenter
And you were a lady,
Would you marry me anyway?
Would you have my baby?
If a tinker were my trade
would you still find me,
Carrying the pots I made,
Following behind me.
Save my love through loneliness,
Save my love for sorrow,
I’m given you my onliness,
Come give your tomorrow.
If I worked my hands in wood,
Would you still love me?
Answer me babe, “Yes I would,
I’ll put you above me.”
If I were a miller
at a mill wheel grinding,
would you miss your color box,
and your soft shoe shining?
If I were a carpenter
and you were a lady,
Would you marry me anyway?
Would you have my baby?
Would you marry anyway?
Would you have my baby?
Não dá para ser feliz com um carpinteiro e três filhos. Entendo a mulher que preferiu viver um amor com um marinheiro sonhador mundo afora. Ainda bem que Joan Baez não se apaixonou por um carpinteiro, seria um desperdício.
Falando nela. Está linda com seus cabelos prateados. Uma bela tia, quase avó.
Sérgio, muito bom o texto, obrigado pela lembrança.
a música é belíssima mesmo.eu
conhecia a versão desta música de um disco solo do Robert Plant, 1990. não sabia que também tinha do Led Zeppelin.
legal!
Excelente este texto, a canção é lindíssima e não sabia que tinha tantas versões.
A versão dos Led Zeppelin é que me deixou um tanto admirado e penso que é antes do Plant, como diz o comentário anterior.