A mulher muito bela pode ser uma lua cheia de solidão. Um dia, veio à América o verdadeiro casal real britânico, Vivien Leigh e Laurence Olivier. Hollywood queria que Leigh fosse a Scarlett de E Tudo o Vento Levou. No jantar de boas vindas estava também Greta Garbo, coisa rara para a reclusa que ela era. No fim, a sueca convidou Olivier para um passeio pelo jardim que se estendia frente à ampla vidraça do salão. Leigh ficou a vê-los caminhar e conversar. Torcia-se de ciúmes. Fez depois uma cena ao marido. Queria saber de que falavam. De jardins, disse-lhe Olivier, enraivecendo ainda mais a sua Vivien.
Mas era a pura verdade. Garbo tinha saudades dos jardins suecos e queria saber se também eram bonitos os jardins ingleses. “Oh, sim, jardins lindos,” terá respondido Olivier. E passaram quinze peripatéticos minutos a comparar jardins, se tinham árvores de frutos, se plantavam morangos. Olivier chegou a dizer-lhe que até plantavam couves, mas que isso já era mais uma horta do que um jardim e Garbo, disse ele a Vivien, percebeu a diferença.
Os olhos e ouvidos que testemunharam os factos foram os de Garson Kanin, realizador do excelente My Favourite Wife e argumentista de duas obras-primas, A Double Life e Adam’s Rib. A Garbo fez, por essa altura, um papel que a atirou para píncaros de popularidade. Em Ninotchka, Lubitsch converteu-a numa funcionária estalinista que vinha a Paris e acabava derretida num capitalista jardim de delícias. Lenda do cinema mudo, Garbo entrara no cinema sonoro a pedir um whisky, provando que sabia falar. Demonstrava agora, com Lubitsch, que sabia rir-se. E fazer rir.
Kanin queria filmar com ela. Numa das conversas, Kanin contou-lhe uma cena que vira numa peça de teatro em Paris. Uma amiga confessava à outra que recebera uma carta de amor. Essa mulher amada dizia à confidente que lera a missiva, voltara a lê-la duas, três vezes, apertara a amorosa folha de papel contra o peito, beijara-a com discreta doçura e, de repente, subindo num impulso as escadas, fechara-se no quarto, arrancando o vestido e esfregando, devagar e logo freneticamente, a carta em todo o corpo. A seguir, em êxtase, a mulher amada comera a carta.
Greta Garbo olhou para ele, espantada. Bateu palmas e, disfarçando uma antiquíssima sombra com um riso nervoso, deixou cair dos lábios a envergonhada confissão: “Em toda a minha vida não recebi uma carta de amor. Uma única.”
Milhões de homens dormiam com a imagem dela, amavam-na até no simulacro que eram as mulheres que tinham, tocavam-lhe a ferida e dolorosa divindade na sala escura, e nenhum lhe escreveu uma carta. Atrás do véu de cada filme, atrás de cada lancinante olhar em close-up, ainda hoje se ouve a rouca voz de Garbo: “I want to be alone.” Queria?
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia
Maravilha de história. Brilho de texto.