Robert Parrish é um conhecidíssimo desconhecido. Atravessou cinco décadas de Hollywood. Foi exímio montador e ganhou um Oscar pela montagem de Body and Soul de Robert Rossen. Realizou uma mão cheia de filmes esquecidos.
À discrição da carreira contrapôs uma vida ao colo de grandes realizadores, recheada de episódios que deviam ser ensinados nas Escolas de Cinema. Num livro maravilhoso e divertidíssimo, Growing up in Hollywood, Parrish leva-nos a ver o cinema tal como é feito. Ou, pelo menos, como era feito pelos grandes, imensos, cineastas do panteão americano.
John Ford deu-lhe a mão e até mesmo, numa daquelas lições zen à Ford, um soco em pleno plateau. Parrish tinha 20 anos e Ford encarregou-o da montagem de Drums Along the Mohawk, seu primeiro filme a cores. Parrish sentou-se à moviola e, passadas horas, o único resultado era uma poça de suor a seus pés.
Ford veio à sala, sentiu o nervoso bafo quente e disse-lhe: “Meu filho, se não consegues fazer isto, nunca farás mais nada na vida. É simples. No princípio de cada cena cortas o plano em que eu digo ‘acção’ e no fim cortas a parte em que digo ‘corta’. Fazes o mesmo com a cena seguinte e colas as duas cenas nessa ordem”. Parrish confirma. Era a mais pura verdade, Ford não filmava cenas ou planos, filmava o filme inteiro que já tinha na cabeça. A montagem era uma incómoda formalidade a que minudências técnicas o obrigavam.
Lição de montagem com Ford, lição de direcção de actores com Raoul Walsh. Em Cheyenne, Walsh quis fazer, e fez, um western com mais tensão sexual do que pistolas. A actriz era a muito opinativa Jane Wyman. A preparar uma das cenas, Walsh desdobrou-se em indicações ao cow-boy protagonista e mandou-os filmar. Jane não se conteve: “Mr. Walsh, e eu como reajo?” O realizador virou-lhe as costas e ao ouvido do protagonista disse em surdina: “Quando passares por ela dá-lhe um bom apertão numa das nádegas, logo veremos como reage.”
Mas se quisermos conhecer a idiossincrasia dos grandes criadores, os avassaladores dilemas com que se debate o artista no angustiante momento da criação, temos de assistir a outra elucidativa conversa. Chaplin convidara Parrish para visionar o material bruto de Monsieur Verdoux. De uma cena, Chaplin mostrou-lhe quatro diferentes takes. “Então?” perguntou. “Bom, escolhia a quarta,” respondeu Parrish. Chaplin espantou-se: “A quarta? Mas a terceira é a melhor.” Parrish concordou: “Sim, mas passa um electricista ao fundo.” Chaplin saltou da cadeira exaltado: “Mas como é que você o viu. Se estivesse a olhar para mim como devia, nunca o teria visto. Os espectadores no cinema vão estar a olhar para mim…” E é, outra vez, verdade: artista é o que já sabe para onde é que o público vai olhar.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
Grande aula Manuel. Homenagem ao montador, esquecidos artistas da moviola. As mesas eletrônicas precisam de ártifices da montagem, para aos efeitos especiais e altamente necessários para os efeitos essenciais a arte. Ps episódios narrados retratam bem a importância de um Parrish.
Era para escrever qualquer coisa porque gostei bastante deste texto do meu conterrâneo mas não é preciso – o Miltinho não deixou escapar!
José Luis e Manuel resgatam meus laços de além mar.
Hê hê… Mas, caríssimo José Luís, se você deixar de enviar seus comentários porque o Miltinho comentou antes, então jamais voltarei a ter o prazer de ter aqui sua opinião!
Por favor, não faça isso!
Um grande abraço.
Sérgio
Caro José Luis, não vamos privar o Sérgio dos seus comentários. Vou aguardar 24hs, pelo menos.
Eu queria dizer isto: há artigos de M. S. Fonseca que não percebo ou tenho muitíssima dificuldade em entender apesar de muito bem escritos, logo não gosto.
Não posso gostar do que não percebo.
Não é o caso deste de que gosto muitíssimo, em especial daquela história do Ford, uma delícia.
Parece que Hitchcock também filmava dessa maneira, no fim, só havia o material para o filme, mais nada.