Sangue no Deserto

Quem é que disse que os wes­terns se divi­diam em três tipos: os de ima­gens, os de ideias, e os de ima­gens e de ideias? Só pode ter sido Godard. E agora me lem­bro: foi jus­ta­mente num texto sobre um wes­tern de Anthony Mann, O Homem do Oeste, que ele, aliás, con­si­de­rava um exem­plo do wes­tern de ima­gens e ideias.San­gue no Deserto, The Tin Star no ori­gi­nal, pela sua extrema abs­trac­ção, é um exem­plo óptimo do wes­tern de ideias. Nenhum outro wes­tern de Mann tem a extrema depu­ra­ção que pode­mos encon­trar em San­gue no Deserto.

Por exem­plo, logo na pri­meira sequên­cia – lin­dís­sima e mór­bida – se dese­nha a lógica for­mal do filme e que é, como se reco­nhe­cerá à saci­e­dade, um movi­mento do exte­rior para o inte­rior. Vemos Henry Fonda, com uma barba de 3 dias, entrar na minús­cula cidade a cavalo e, num outro cavalo que traz pela rédea, con­du­zir um cadá­ver até ao largo cen­tral. Servindo-se bem da música muito inten­ci­o­nal de Elmer Berns­tein, Mann, que era um con­su­mado mes­tre do tra­vel­ling late­ral, con­se­gue trans­for­mar o largo num palco para onde con­ver­gem todos os olha­res e con­se­gue que um wes­tern – por exce­lên­cia o género cine­ma­to­grá­fico dos gran­des espa­ços aber­tos – seja um exem­plo aca­bado de arte tea­tral.

É tea­tro e há um equi­lí­brio pre­cá­rio entre palco e bas­ti­do­res, suge­rido pela alter­nân­cia de pon­tos de vis­tas: Mann filma do inte­rior do escri­tó­rio do xerife para o largo, mas é para o inte­rior do escri­tó­rio que con­ver­gem os olha­res dos per­so­na­gens que estão no largo.

E como é tea­tro, há um equi­lí­brio entre o décor e as per­so­na­gens. A impor­tân­cia ful­cral do cená­rio cen­tral não anula a força das per­so­na­gens que o ocu­pam, em par­ti­cu­lar o tri­ân­gulo Fonda-Anthony Perkins-Neville Brand. E sendo o tea­tro de um wes­tern, há um equi­lí­brio entre o colec­tivo e o indi­vi­dual situ­ando numa comu­ni­dade pre­cisa a his­tó­ria de trans­fe­rên­cia de matu­ri­dade em que con­siste a rela­ção entre as per­so­na­gens de Henry Fonda e Anthony Per­kins.

E há ainda a explo­ra­ção de outra ideia, a do equi­lí­brio entre o mecâ­nico e o humano, belis­si­ma­mente tra­tado em duas cenas de sinal con­trá­rio. A pri­meira sobre­va­lo­ri­zando dra­ma­ti­ca­mente a perí­cia mecâ­nica de pis­to­leiro de Henry Fonda, quando inter­vém no duelo entre o xerife e o vilão. A segunda, con­cluindo a apren­di­za­gem de Per­kins no manejo das armas, quando Fonda lhe diz: “Estuda os homens. Uma pis­tola não é mais do que uma fer­ra­menta.”

San­gue no Deserto é uma pará­bola. O argu­mento de Dudley Nichols é notá­vel e obteve nome­a­ção para o Oscar. Com uma sim­ples his­tó­ria de apren­di­za­gem, a his­tó­ria de um xerife, Per­kins, que aprende com um ex-xerife, Fonda, o manejo do revól­ver que lhe per­mi­tirá ven­cer o vilão, Neville Brand, o argu­men­tista eleva-se a voos mais arris­ca­dos, mos­trando a génese e fazendo a prova da neces­si­dade da Lei para o esta­be­le­ci­mento de uma comu­ni­dade.

O tea­tro de Mann fun­ci­ona como ponto de pas­sa­gem do caos à civi­li­za­ção, tema nobre de que outro wes­tern, O Homem que Matou Liberty Valance de John Ford, cons­ti­tuirá, anos mais tarde, o cume.

O argu­mento de Nichols era suma­rento. Anthony Mann secou-o. Mos­trou que se pode resu­mir um grande tema huma­nista a um só objecto dra­má­tico, neste caso à estrela de latão que deu ori­gi­nal­mente título ao filme, e que Per­kins passa o tempo a empur­rar para a lapela do casaco de Fonda. E Mann tam­bém mos­trou, servindo-se da cara inde­ci­frá­vel de Henry Fonda (e do seu andar feito para a len­ti­dão de um tra­vel­ling), que o nii­lismo pode ser a apa­rên­cia do mais alto sen­tido moral.

Se tenho a cer­teza de ter estado a escre­ver sobre um wes­tern? Abso­luta. Vêem-se bons due­los e há uma mul­ti­dão pronta para um lin­cha­mento. Não há bei­jos. Tudo feito por Mann com enqua­dra­men­tos manei­ris­tas e uma escrita que leva­ria Godard a chamar-lhe “cine­asta virgiliano”.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

 

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