Sá & Guarabyra: garimpo no interior

Milton Nascimento, carioca criado entre as montanhas e os sons de Minas Gerais, soube sintetizar muito bem, com o parceiro Fernando Brant, o cansaço que dão os modismos culturais criados no eixo Rio de Janeiro – São Paulo e impostos ao resto do País: “O Brasil não é só litoral, é muito mais, é muito mais que qualquer zona sul (…) Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer deste lugar um bom país” (“Notícias do Brasil”, de 1981).

Milton, figura maior no universo da música popular feita aqui, sempre soube disso. Como ele, um punhado de outros artistas, embora menos bem-sucedidos comercialmente, há muitos anos procura extrair do Interior os riquíssimos elementos para os quais a indústria cultural dos grandes centros dá as costas. Um dos casos mais interessantes desses compositores-garimpeiros da cultura do interior brasileiro – embora nem sempre a notícia saia nos jornais ou na televisão – é, sem dúvida, o de Luís Carlos Sá e Gutemberg Guarabyra.

Os dois primeiros LPs da carreira do carioca Sá e do baiano (do sertão) Guarabyra, que então formavam um trio com o carioca Zé Rodrix, gravados em 1972 e 1973, não abriam mão dos elementos urbanos, das guitarras elétricas, do rock, de temas como os bailinhos e os programas dos adolescentes criados na cidade grande. Mas misturavam com isso pitadas fortes da cultura do interior e falavam do cheiro do pó da estrada, os bichos que cantam alto na noite, as romarias, o mato do jardim, o brilho das pedras, o fascínio dos rios. Foram os primeiros dentro da música “universitária” – garante Luís Carlos Sá – a usar a viola caipira, ao lado da guitarra e dos órgãos elétricos, a procurar arranjos instrumentais e vocais que evocassem a música feita no Interior.

Naqueles dois primeiros LPs – Passado, Presente, Futuro, de 1972, e Terra, de 1973 – eles fizeram baladas, baiões, rumbas, congas, xotes, valsas e rocks, o que não impediu que sua música ficasse sendo conhecida pelo rótulo de rock mural. Nunca engoliram muito esse rótulo – Sá diz que preferia o termo caipira progressivo, mais vasto e abrangente do que o rock rural. Mas fizeram algum sucesso e influenciaram, naquele começo dos anos 70, muitos outros grupos e compositores (entre estes, Sá cita os Secos & Molhados da primeira fase, ainda com Ney Matogrosso, e mais os Almôndegas, de onde saíram Kleiton e Kleidir; o próprio Renato Teixeira, talvez o mais bem-acabado exemplo de caipira progressivo, ainda não havia, naquela época, definido inteiramente o seu estilo, o que só aconteceria no seu LP de 1978, Romaria).

Desfeito o trio Sá, Rodrix e Guarabyra, com a saída de Rodrix, os outros dois prosseguiram no seu trabalho de mesclar o caipira com o urbano. Gravaram dois LPs pela Continental (Nunca, de 1974, e Cadernos de Viagem, de 1975), bons LPs, mas que nunca chegaram a vender muito bem. Tanto que estes dois discos, mais os dois iniciais do trio, não são mais produzidos pelas gravadoras e raramente tocam no rádio – embora, curiosamente, sejam disputados, nas lojas especializadas em discos usados de São Paulo, a preços que chegam a três vezes o valor de um LP novo.

Com o LP de 1978, Pirão de peixe com pimenta, conseguiram pelo menos um sucesso nacional, o maravilhoso xote “Sobradinho”, sobre as cinco cidades do Norte do sertão baiano inundadas pela formação do lago de Sobradinho. Mas só voltariam a gravar – ao contrário da grande maioria dos outros artistas, que faz um disco a cada ano – em 1980, com o LP Quatro.

O quinto LP de Sá e Guarabyra (e sétimo, contando com os dois do trio Sá, Rodrix e Guarabyra), lançado há algumas semanas pela RCA, é exatamente uma retrospectiva destes dez anos de carreira. Chama-se 10 Anos Juntos e foi gravado ao vivo durante as cinco apresentações da dupla no final de outubro do ano passado (1982) em São Paulo. Muito sintomaticamente, o show que resultou no LP não foi apresentado no Tuca, no Pixinguinha ou em qualquer outro dos teatros dos bairros nobres de São Paulo, mas no Paulo Eiró, teatro simples, da Prefeitura, em um trecho barulhento de Santo Amaro (“O Brasil é muito mais do que qualquer zona sul…”). Diante de uma casa lotada, com a platéia ocupando todos os espaços, inclusive dos corredores, Sá e Guarabyra contaram histórias de suas vidas e carreiras e apresentaram músicas de antes e depois de 1972, ano em que começaram a trabalhar juntos.

Das várias composições que apresentaram, escolheram 11 para compor o LP – o qual, fazem questão de dizer no encarte, não tem adicionais de estúdio e reproduz fielmente o que foi apresentado no espetáculo. (O ouvinte não perde nada com isso: a qualidade de som é muito boa). Para a legião relativamente pequena, mas muito fiel, dos admiradores da dupla, é um disco imprescindível – mesmo porque nada garante que daqui a uns dois anos ele ainda possa ser encontrado em qualquer loja. Para quem não conhece bem o seu trabalho, é uma experiência no mínimo agradável.

As vozes são gostosas, afinadas, corretas, simpáticas; as interpretações são sensíveis, às vezes comoventes (Luís Carlos Sá consegue a proeza de regravar uma música que ficou muito conhecida na voz de Milton Nascimento e fazer-nos até esquecer da versão do grande cantor, na faixa “Caçador de mim”, de Sá e Sérgio Magrão). Os arranjos são simples, nada grandiosos ou grandiloqüentes, e muito bem cuidados; o acompanhamento, do conjunto Ponte Aérea, que há cinco anos toca com a dupla e até já gravou um LP solo, é muito bom (nada mais que guitarras, baixo, teclados e bateria, com o acréscimo de violas e violões tocados por Sá e Guarabyra).

E as canções são, todas, no mínimo gostosas, agradáveis (até mesmo as mais fracas, como “Dança o atrevido”, bela melodia para uma letra muito pobre), às vezes inteligentes e sensíveis (como “Vem queimando a nave louca” e “Sete Marias”), às vezes brilhantes (como “O Pó da Estrada”, “Dona”, do último festival da Globo, e “Sobradinho”). Uma bela lição de simplicidade, coerência e competência. E mais uma bela prova de que o Brasil – felizmente – é muito mais do que qualquer zona sul.

Este texto foi publicado na revista Ato, na edição de março/abril de 1983.

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