O competidor de tiro com arma tem tal nível de concentração e preparo mental que percebe os movimentos do coração. Quando o órgão se contrai para bombear o sangue (sístole), ele atira. Se disparar quando o coração relaxa (diástole), a mão pode tremer, e ele errar o tiro.
Este dado faz parte do cotidiano da psicóloga Katia Rubio, autora de 15 livros sobre Psicologia do Esporte e Estudos Olímpicos, sua especialidade. Nesta entrevista ao Diário do Comércio, ela conta como o ato de evitar a dispersão do pensamento, durante uma prova, é algo que pode ser treinado. E anota um fato. Em Londres, o número de mulheres na delegação brasileira está bem perto de se igualar ao dos homens: 47,29%, contra 52,71%. Até 1974, elas eram proibidas de praticar o futebol e outras modalidades.
Katia, professora da Escola de Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo, USP, pós- doutorada em Barcelona, na Espanha, não competiu em olimpíada, mas ganhou medalha. A do Mérito Esportivo, dada pelo então presidente Lula, em junho de 2010.
DC – Como a psicologia atua no esporte?
Katia Rubio – Numa visão geral tem-se a psicologia como uma forma de fazer o atleta produzir mais.
Os aspectos mentais e emocionais muitas vezes definem um grande atleta em relação a um atleta mediano. Mas às vezes o mediano tem o controle que o grande atleta não possui, e ele acaba tendo vantagem sobre o outro. A grande novidade que a gente começou a desenvolver no Brasil é a psicologia social do esporte. Avalia-se o contexto em que esse atleta está sendo criado, desenvolvido, e as relações do meio na sua formação pessoal. Isso vai interferir depois na ponta, no momento em que ele vai para a competição.
– Na Olimpíada, especialmente, há modalidades que exigem mais suporte psicológico?
– Cada uma em sua especificidade. Por exemplo, numa modalidade como o tiro com arco, ou com arma, o nível de concentração e preparação mental é tamanho, que o atleta sabe se o coração dele está na sístole ou na diástole para poder atirar. Porque se ele atirar na diástole, a mão dele treme e ele erra o tiro.
– Como ele sabe uma coisa dessas?
– Por conhecimento, por treinamento, percepção. E isso é totalmente diferente de um atleta de futebol, de voleibol. O desafio do psicólogo do esporte é conhecer com muita profundidade a modalidade com a qual ele vai trabalhar, para poder organizar o treinamento mental desse atleta com as especificidades da modalidade que ele pratica.
– Como é organizar o treinamento mental?
– Primeiro é preciso entender que atleta é esse. Então a gente faz uma coisa que chama de psíquico-diagnóstico esportivo. Em que a gente busca entender o mecanismo, a psicodinâmica desse atleta. Como ele pensa, como se comporta… E onde estão as lacunas que impedem que ele alcance a excelência. E é então nessas lacunas que a gente atua.
– Como podem ser essas lacunas?
– Alguma questão pessoal que quebre a concentração para aquilo que ele está fazendo naquele momento. Por exemplo, um atleta que vai correr cem metros. Se o pensamento dele escapar no momento em que estiver no bloco (pronto para a largada) ele perde a corrida, mesmo sendo o mais veloz. Então, a atenção dele, o pensamento dele tem que estar integralmente naquilo que ele está fazendo naquele minuto.
Um atleta de tênis faz uma partida de três horas. O tênis é uma modalidade que a gente sabe que o pensamento flutua, é isso o que a gente chama de pensamento flutuante, às vezes ele vai, às vezes ele volta. Então essa capacidade de trazer o pensamento de volta é uma coisa que se treina.
– A senhora trabalha com alguma modalidade de esporte específica?
– Sim, eu sou a psicóloga da Confederação Brasileira de Tênis de Mesa.
– O tênis de mesa é um simples passeio, vai lá e joga?
– Não! O tênis de mesa é uma modalidade em que se define um ponto às vezes em cinco segundos. Tudo é muito rápido, a tomada de decisão, a definição se eu vou pôr a bola nesse canto ou naquele é tudo muito ágil. É um esporte muito mental.
– Esse esportista tem que ter algum valor, alguma capacidade diferente dos outros?
– Esse, assim como no tênis, é um atleta que está na mesa durante os quinze minutos de competição. Se ele perde o pensamento por alguns segundos, ele perde o jogo.
– E tem que ter uma habilidade motora boa…
– Sim, porque se o atleta for tenso, por exemplo, ele perde. Porque há que ter uma leveza, uma fluidez no movimento, muito intensa. E também o corpo do atleta se desloca com muita velocidade o tempo inteiro.
– A senhora tem histórias de muitos atletas, não?
– Eu estudo a trajetória dos atletas olímpicos brasileiros. A minha pesquisa é recontar a história do esporte brasileiro por meio da percepção dos atletas. Já fiz mais de 700 entrevistas com atletas olímpicos. Eu tenho uma impressão de que não se sabe como o atleta brasileiro ganhou tanta medalha. Porque os atletas brasileiros não têm apoio, não têm suporte. Então é muito mais uma marca pessoal que o leva a conquistar esses feitos incomuns, do que uma política de esporte, de desenvolvimento, que preze por uma trajetória, por um processo.
– Pode contar um caso expressivo entre os que a senhora estudou?
– As vitórias brasileiras são todas muito pessoais, e estão relacionadas com a trajetória de atletas como o Joaquim Cruz, que é filho de uma família de pau de araras. Era o filho caçula de uma família de cinco irmãos que saiu do Piauí e foi morar em Brasília. Um garoto que foi criado sem recursos e que ganha a oportunidade de estudar nos Estados Unidos para se desenvolver como atleta.
Foi um dos grandes atletas olímpicos brasileiros. Conquistou a medalha de ouro nos oitocentos metros em Los Ângeles, em 1984, e de prata em Seul, em 1998.
– A Olimpíada de Londres tem alguma característica especial, um superatleta?
– A boa notícia é que o número de mulheres na delegação, 47,29%, está muito próximo do ocupado pelos homens, 52,71%. Até os jogos de 1974 tivemos só uma mulher. Em 1956, 1960 e 1964 só foi uma mulher em cada edição, e todas no atletismo. Agora a mulher brasileira está chegando, na delegação, àquilo que já conquistou na sociedade, que é a igualdade.
– Por que isso aconteceu?
– Durante muitos anos tivemos uma lei que proibia algumas práticas esportivas por mulheres. Futebol, artes marciais, halterofilismo, rúgbi. Era uma lei que veio da época do Estado Novo (1937 a 1945, quando Getúlio Vargas centralizou o poder) e que vigorou até a década de setenta. O judô feminino entrou no programa olímpico em 1992, e hoje temos atletas brasileiras prontas para ganhar medalhas. O vôlei feminino já é medalha de ouro em Pequim e vai com toda a disposição de repetir essa medalha.
– Qual é a diferença de paixão entre as Olimpíadas e a Copa do Mundo?
– São dois espetáculos diferenciados. O tipo de emoção que os jogos olímpicos proporcionam é uma montanha russa, porque são diferentes modalidades, você assiste a diferentes espetáculos e aquilo impacta emocionalmente de maneiras distintas. E futebol é bola na rede.
Esta entrevista foi originalmente publicada no Diário do Comércio, em 27/7/2012.