Meia-noite e os lábios de Al Pacino parecem uma sanguessuga. Doem nos de John Cazale e doem-nos a nós no mais infame beijo de Fim de Ano. John Cazale é Fredo. Pacino é Michael Corleone, o Padrinho. “Eu sei que foste tu. Desfizeste-me o coração”, diz Al Pacino mal tira os lábios dos lábios do irmão. Não há, nesse beijo de morte, o mais recôndito indício de Feliz Ano Novo. Humedece-o a traição que vem do passado cobrar o seu preço. O futuro morre ali, em Cuba, entre confetti e champagne.
Outra ou a mesma meia-noite e a boca de Fred McMurray beija distraída a da amante, Shirley McLaine. Ele vira-lhe as costas para cantar com a multidão e ao voltar-se já só vê a festiva coroa dourada dela na cadeira vazia. O filme é The Apartment e Shirley McLaine corre agora contra o gélido Dezembro de Nova Iorque. Tem mais esperança do que frio: a alma voa-lhe para a verdade do amor que acaba de descobrir e sabemos lá nós o que o corpo lhe pede. Entra num prédio e cavalga as escadas como atleticamente as sapatearia Gene Kelly, que não é deste filme. Ouve então um estampido terrível. Talvez o tiro com que Jack Lemmon, o verdadeiro amor finalmente reconhecido, terá posto fim à solteira solidão.
McLaine bate à porta, desesperada. Aparece-lhe, vivo, o patético desalento de Lemmon, garrafa de champagne na mão. É Fim de Ano e, frente a frente, está a solidão de dois seres humanos: ele despediu-se para não emprestar o apartamento aos sórdidos adultérios do chefe e ela vem de abandonar o amante casado. Fecham a porta e o que se abre aos dois é o Feliz Ano Novo, a limpa e decente dignidade de um novo começo. Nem precisam de beijos: duas gentis taças efervescentes, um baralho de cartas para a intimidade de um gin rummy e basta. Sentam-se no coçado sofá como quem se senta no mais dourado futuro.
Quem recusa promessas de ouro é Cary Grant. Em Holiday, Grant tem quase 30 anos e trabalha, honesto e com sucesso, desde os 12. Apaixonou-se pela filha, mas não pelo dinheiro, de um ultramilionário. A irmã da noiva, a insatisfeita Katharine Hepburn, conversa com ele numa sala cheia de adormecidos sonhos, onde o resto da família já nem entra. Cada um tem a sua sala de esconder sonhos: uma bateria com que íamos ser músicos, a tela que deixámos a meio. A sala de incendiar a rotina e rasgar convenções.
O milionário, sempre à mesma ou talvez outra meia-noite, anunciará o noivado, escancarando ao noivo as janelas da plutocracia. Como a noiva deseja. Mas já Grant contou à rebelde Hepburn que quer ser livre e fazer na vida o que o apaixona. Vai despedir-se do emprego, vivendo com o que tem sem trabalhar mais. À meia-noite, Grant não beija a noiva. Resgatou da sala de esquecidas coisas mortas um sonho novinho em folha. A irmã da noiva também: a liberdade de um Feliz Ano Novo.
Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.
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Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia.
The Apartment, no Brasil Se Meu Apartamento Falasse; Holiday, no Brasil Boêmio Encantador.