Uma menina de quatro anos ia ao cinema, sem saber o que era cinema. O grande carro preto importado – o táxi – partia da Rua da Cantareira, onde a família morava e trabalhava. No banco da frente, o pai, de terno e gravata. Atrás, bem penteadas e vestidas, a mãe e as duas irmãs. A menina ia em pé, segurando-se em uma correia. Era uma corrida curta, até um dos quatro cinemas do bairro da Liberdade. Em cartaz, filmes japoneses. Que tal aquele com o grande Toshirô Mifune?
A menina Olga não podia assistir aos filmes; a idade mínima era cinco anos. Então, ganhava uma “casquinha” com caramelos, e ficava sob os cuidados da funcionária da bilheteria. De vez em quando, corria até o cortinado verde, no fim do saguão, e espiava por uma fresta. Via um lugar escuro, cortado por um facho de luz. Isso lhe parecia muito misterioso, mas sentia que alguma coisa importante estava acontecendo. Por que seu pai saía de lá pensativo, e sua mãe, muitas vezes, enxugando os olhos?
Se Olga, hoje a cineasta Olga Futemma, voltasse ao único sobrevivente daqueles quatro cinemas veria o mesmo prédio, reluzindo como novo. O Cine Jóia, com o formato de um diamante, viveu dias inesquecíveis nas décadas de 1950 a 1980. Depois, serviu de templo evangélico. Há quatro meses é uma badalada casa de shows.
Uma reforma deu-lhe três ambientes, mas manteve alguns elementos originais. A lotação de 1.500 pessoas está frequentemente no limite. Kurosawa, quem? Os gritos dos samurais do imortal diretor japonês não ecoam mais por ali. O que reverbera hoje é a voz amplificada de cantores do momento, ou o som metálico das bandas.
“Quando eu tinha nove anos, resolvi ir ao cinema sozinha”, recorda Olga. “A censura era para dez anos. Eu fiquei me preparando para dizer que tinha essa idade. Quando cheguei ao cinema, e perguntaram, acabei dizendo que tinha nove anos. Então eu quis saber que tipo de filme uma menina de nove anos não pode ver, e uma de dez pode. E me deixaram entrar. Era um filme de espadachim muito violento, lembro dos braços sendo cortados.”
Ela não sabia, mas estava testemunhando a época de ouro do cinema japonês. Produções que faziam sucesso em outras partes do mundo podiam ser vistas naqueles quatro cinemas da Liberdade. Guerra e Humanidade, do diretor Nakasi Kobayashi, um épico com nove horas de duração, foi o filme que mais a marcou. “Uma obra-prima, apresentada em três programas de três horas.”
Aquelas fitas em preto e branco encantaram também muitos diretores de cinema que nada tinham a ver com o Japão. Um deles, Walter Hugo Khouri, admitiria mais tarde ter absorvido em sua obra muito do intimismo dos mestres japoneses. E o diretor de teatro Antunes Filho considerou os filmes “a revelação de um outro mundo”. Escreveu, em artigo recente: “Sabor trágico, dramático, os rostos e posturas imóveis, de sentido enigmático, fatal”.
Os avós de Olga cumpriram a saga dos imigrantes japoneses. Desceram de um navio em Santos, e foram para o interior, trabalhar na lavoura. Em 1937, estavam em São Paulo. Um arranjo de famílias resultou no casamento dos pais da cineasta, juntos até hoje. Como ganharam a vida? Em um mercadinho ao lado do Mercado Central, na Rua da Cantareira. O pai como atacadista, a mãe vendendo legumes. Lazer? O cinema.
“Chegávamos e víamos a fila na porta. Parecia um espaço de footing (onde se trocam olhares). As moças na fila, todas chiques. E os rapazes do outro lado da calçada, alguns encostados em carros, ou em bares.” Algumas famílias levavam a caixinha com o bentô. Na caixinha, descreve Olga, havia geralmente bolinhos de arroz e acompanhamentos. O bentô era mais frequente em cinemas do interior.
Na sala escura, na parte de baixo da cena exibida, vazava uma luz, que resultava na legenda do filme. Uma máquina importada, o contratipo, fazia queimaduras com a forma de letras no celuloide (a película com as cenas). Pela área queimada passava luz. Assim, era possível ler as letras.
Olga podia entender a ação de Barba Ruíva, o filme que mais a agradou. Toshirô Mifune no papel de um médico que ensina aos recém-formados o significado humanitário de seu trabalho. Direção de Akira Kurosawa. Ela assistiu aos 30 filmes que Kurosawa dirigiu, em 50 anos de atividade. Entre eles o consagrado Os Sete Samurais, de 1954, com o mesmo Toshirô Mifune.
“Mas aos 14 anos, com minhas irmãs, aprendi o caminho para a cidade além da Liberdade. Nos cinemas do centro, me afundei nos filmes de Hollywood, maravilhosos”. Os samurays e heróis de enredos dramáticos foram trocados por Doris Day e Rock Hudson…
Depois, Olga dedicou-se ao cinema brasileiro, formou-se em cinema na Escola de Comunicação e Artes, ECA, da Universidade de São Paulo, USP. Hoje é um dos diretores da Cinemateca Brasileira. Uma profunda conhecedora dos filmes japoneses. Sobre os tempos dos cinemas da Liberdade, diz que houve “uma convivência feliz da força da colônia japonesa com a extraordinária, maravilhosa produção do cinema japonês – que, na época, só perdia para a cinematografia italiana”.
Um neto de japoneses, Alexandre Kishimoto, integrante do Grupo de Antropologia Visual da USP, Gravi, também mergulhou nessa história. Em “A experiência do cinema japonês no bairro da Liberdade”, sua tese de mestrado em antropologia social, detalha fatos daquelas marcantes três décadas.
“Ir ao cinema, para as famílias japonesas, era um programa extraordinário”, diz. “Era ritualizado, elas não tinham outra opção de cultura e lazer.” E acessível: os ingressos saiam baratos.
“Iam as famílias, suas crianças, amigos e vizinhos. Colegas de escola. Todos com roupa bem cuidada, em respeito ao decoro das salas de cinema.” (Na época, as salas do centro da cidade exigiam dos homens gravata e paletó.)
O trabalho de Alexandre conta que em 1952, quando surgiu na Liberdade, o Jóia era um simples cinema de bairro. As outras três salas viriam depois: Niterói, Tókio (mais tarde Nikkatsu) e Nippon. Passados sete anos, a empresa japonesa Toho alugou o Jóia, para exibir com exclusividade seus filmes. A Toho tinha as fitas de diretores de renome internacional, como Mikio Naruse, Elzo Sugawa e Kurosawa. Foi assim durante dezenove anos, de 1959 a 1978.
Depoimentos colhidos por Alexandre descrevem o Jóia como um cinema grande (987 lugares), com sala de espera muito pequena. A fachada era verde, grande e bonita. Mas a mais simples e desconfortável dentre as quatro salas. As cadeiras, de madeira, são descritas como muito finas. Se a pessoa colocasse o joelho ou o pé nas costas da cadeira à sua frente, quem estava nela sentia a pressão. O que causou o declínio desses cinemas foi a ausência cada vez mais acentuada de público. O motivo foi o mesmo, para salas de todo o País. A chegada do videocassete transferiu os filmes para a tela da TV.
Nas fazendas do interior,
cinema ao ar livre para os trabalhadores
e suas famílias
Os imigrantes japoneses do interior faziam festa quando o velho caminhão chegava, com suas tralhas. Este caminhão podia ser um Ford “Pé de Bode”. As tralhas, um projetor de cinema, um gerador, um pedaço de pano branco. Ah, sim. E havia aquele homem, o katsuben.
Estamos falando de 1926, 1927. O cinema ambulante corria as fazendas onde os japoneses trabalhavam. Na hora marcada, o dono estendia um pano branco, que seria a tela. Energia elétrica muitas vezes não existia. Mas havia o “Pé de Bode”. Uma roda de trás em movimento acionava um gerador, e este alimentava o projetor (perfeito, não fosse o barulho).
A platéia esperava, sentada no chão, em cima de um pano. Quando o filme começava, empolgava-se; as crianças, principalmente. Mesmo que fosse um documentário. As histórias de ficção, as preferidas, tinham geralmente o defeito de ser curtas.
Eram tempos do cinema mudo. Por isso estava lá o Katsuben. Ao lado da tela, ele narrava e explicava o filme, com o tom de voz e expressões exigidas pela cena. Dramáticas, hilárias. Muitas vezes, o narrador era mais aplaudido do que o filme. Não era nada difícil que o celulóide se rompesse no meio da exibição. Às vezes no melhor momento da história. Enquanto se consertava a fita, os adultos tomavam um pouco da pinga trazida de casa.
Não se comprava ingresso, mas davam-se contribuições. O dinheiro era colocado num envelope, com o nome do pagador. Antes da exibição, o dono do cinema dizia: “Vamos proceder aos agradecimentos pelas contribuições recebidas”. E lia os nomes dos envelopes. O dono era justo. Se o filme a ser exibido fosse curto, haveria uma segunda sessão.
(Os dados sobre o cinema nas fazendas do interior paulista foram extraídos da tese de mestrado “A experiência do cinema japonês no bairro da Liberdade”, de Alexandre Kishimoto. As fotos são do Acervo Alexandre Kishimoto.)
Esta reportagem foi originalmente publicada no Diário do Comércio.
Muito bom, adorei!