Goulart revisitado

Por alguma razão desconhecida, João Goulart nunca foi considerado uma figura maiúscula ou sequer relevante na história recente do Brasil.

Embora tenha protagonizado alguns dos momentos mais importantes da história republicana da segunda metade do século passado, ele foi menos estudado que Getúlio, seu mentor político, do que Juscelino Kubitscheck, ou mesmo do que Jânio Quadros, o fugaz político espiroqueta que durou apenas sete meses na presidência, e cuja renúncia deu margem a quase uma biblioteca de explicações, versões e interpretações.

Goulart, depois de ter sido ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, candidatou-se à vice-presidência na chapa de Juscelino Kubitscheck, nas eleições de 1955, e foi eleito com mais votos do que ele. (Naquele tempo, votava-se separadamente no presidente e no vice).

Depois, em 1960, foi eleito vice do oposicionista Jânio Quadros, embora tivesse composto a chapa do candidato governista, o marechal Teixeira Lott.

A escolha esquizofrênica do eleitor – um presidente à direita com um vice à esquerda – esteve na base da gravíssima crise militar que se seguiu à renúncia de Jânio, com o veto dos ministros militares à posse do vice legitimamente eleito.

A crise da posse do vice, a resistência civil ao veto militar, a solução conciliadora do parlamentarismo e a crise definitiva do golpe de 1964, constituem os momentos mais eletrizantes do livro do historiador Jorge Ferreira (João Goulart, uma biografia, editora Civilização Brasileira, 701 páginas).

A reconstituição histórica é minuciosa, detalhada e muito bem fundamentada, e através dela é possível tirar algumas conclusões sobre a aparente contradição que existe entre os episódios da posse, em 1961, e o do golpe militar, em 1964.

Como foi possível que o espírito legalista e constitucionalista que marcou a batalha da posse se transformasse em golpismo apenas três anos depois?

Jango caiu por seu espírito conciliador (acusação que lhe faziam os aliados de esquerda) e sua falta de disposição em levar o país a uma guerra civil ou por ter permitido que se quebrasse a hierarquia militar, o que levou o comando da corporação a vencer a relutância em dar o passo em direção à quebra da legalidade?

O livro apresenta todos os dados para que o leitor forme o seu próprio juízo. Fica bastante claro que Goulart foi levado por um triunfalismo irresponsável de seus aliados e do seu tragicômico “dispositivo militar” a tentar um passo maior do que aquele que sua própria legitimidade, reafirmada no plebiscito pró-presidencialismo, lhe permitia.

Ferreira mostra, com clareza, que nem o governo nem os golpistas tinham os supostos e sofisticados esquemas de organização que lhes eram atribuídos.

O livro vai além: traça um denso perfil humano do personagem João Goulart, tanto de suas origens familiares e de sua formação política, como principalmente da trágica e melancólica saga do exílio.

As mesquinharias e as baixezas que o regime cometeu contra Goulart no exílio, e principalmente no episódio de seu enterro em São Borja, estão expostas na narrativa com suficiente clareza para ajudar a engrossar o passivo moral que o vintênio de ditadura militar ainda tem a resgatar com a História do País.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 24/2/2012.

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