garças e abutres chegados da terra do urubu-rei. capítulo 5

5. A Casa

O pátio era enorme. Tinha a impressão de que poderia me perder por ali com a maior facilidade. Era possível, por exemplo, desenvolverem-se simultaneamente duas ou mais peladas, as dos pequenos e a dos grandes. E, se eu os olhava correndo, eram como espalhadas estrelas perdidas no céu. O pátio era enorme.
O muro que cercava tudo me parecia muito alto, mas era facilmente escalado por alguns deles. Houve uma época em que em cada canto do muro ficava de plantão um dos alunos maiores, para evitar que alguém fugisse. Vigiavam orgulhosos, no desempenho do ofício muito infeliz.
Os dormitórios, parece que no alto. Tenho a impressão de escadas a subir. Então, em baixo deviam ser as salas de aula. Havia uma cozinha e um refeitório. Comia-se em pé ou sentado? Entrávamos em fila e eu imagino bancos compridos ao longo da mesa, estaria eu confundindo com o banco de minha casa em Manhuaçu?
Separado do casarão, havia um grupo de cômodos enfileirados, contendo cada um, um vaso sanitário. Sem tampo. E não havia porta. Nunca me ocorreu sentir vergonha, enquanto estava acocorado no vaso. Ao contrário, podia-se acompanhar o desenvolvimento das brincadeiras. Eu me pergunto agora, se todos os cômodos seriam sem porta.  Que posso saber? Muito provavelmente, alguns eram sem porta e, por causa da quantidade de alunos, acabavam sendo usados pelos pequeninos.
Não sei se era junto a esses cômodos, que se enfileiravam as torneiras. Ali se lavava o rosto, bebia-se água e se lavava os pés antes de subir para os dormitórios.
Havia um grande banheiro de chão de cimento bem liso e cercado de muitos chuveiros. Entrávamos na fila, do lado de fora, tirávamos o macacão de brim, entrávamos. Os macacões conservavam-se em fila, à espera. A água era fria, não me lembro de sabão, toalha não existia. Voltávamos, a fila de pano ganhava vida, se agitava, era rapidamente recheada por corpos molhados e risonhos
Não quero me esquecer de falar das colunas que iam ao longo do casarão e formavam uma varanda entre o pátio e a casa. E ao longo das colunas, unindo-as, uma mureta larga e muito baixa, que acabou virando banco. Sentávamo-nos sobre aqueles bancos de cimento e ali brincávamos muitas vezes. É, sobre tudo, por causa de minha dor de ouvido, de que falarei mais tarde, que me lembro daqueles murinhos.
Numa época qualquer, houve uma reforma em toda a construção. As salas de aula foram pintadas e sobre os portais foram escritos nomes de santos. Não sei se aumentaram o pátio, se mudaram o muro, se derrubaram alguma coisa, não sei, não sei, não sei. As salas foram pintadas e algo mais ocorreu, eis tudo.
Eu me lembro da reforma por causa dos nomes escritos sobre as portas e porque uma parede recém-pintada apareceu com a marca de u’a mão. Procurou-se o culpado e não foi difícil descobrir quem estava com a mão suja de tinta. Não falarei da pena. Não é justo fazer sofrer novamente, aos poucos, aquele corpinho de há muito desmanchado no abandono da morte. Ele há de sofrer muito nalgum capítulo; que sofra tudo e se dê ao seu eterno descanso, no mesmo capítulo.
Está na hora de levar esse meu povo a dormir.
Todos em fila. Lembro de orações berradas em uníssono. No final, o inspetor

    Louvado seja Nosso Senhor
e todos
    Para sempre seja louvado.
    Louvado seja Nosso Senhor
    Para sempre seja louvado.

Quantas vezes? cinco? dez?
    Louvá sê Nossinhô
    Pra sem sê louvá.

Vinte vezes? trinta vezes?
    Louvá Nossinhô
    Prasemselouvá…

Por que se corria tanto? Seria a mesma coisa todos os dias? Enfim, subíamos. No primeiro dia ganhei um cobertor. Na primeira noite, ele desapareceu. Um ruído, um jato de frio, acordei num relance. Uma alma benévola, penso naquele rapaz louro que será protagonista do fato mais marcante de lá, não, não era, estou baralhando tudo, alguém falou no escuro:
Levaram seu cobertor? Vou arranjar outro pra você.
Eu teria chorado? Estaria tremendo muito? Fiquei na expectativa, encolhido, uma voz levantou-se na escuridão:
Filho da puta! Meu cobertor! Filho da puta!
Eu senti que me cobriam e que o benfeitor se afastava, como um gato. Me agarrei ao novo cobertor, quentinho, me agarrei o mais que pude e, no dia seguinte, fiz como faziam os vizinhos: amarravam as quatro pontas nos paus dos beliches e se enfiavam embaixo. Ele chegou sorrindo, dizendo que roubara um cobertor para mim, tivesse cuidado e não o perdesse mais. Lembro de tudo, mas não consigo lembrar desse rosto dissolvido.
Eu ficava no dormitório dos pequenos, com camas mais velhas. Havia um outro, mais limpo, o dos maiores, que nunca cheirava mal. E um terceiro, para os mijões. O inspetor dormia com os grandes, contavam histórias até mais tarde; no nosso bastava soar o berro de silêncio e tudo silenciava.
Não sei de quem partiu a idéia de me levar pro dormitório dos grandes, para dormir junto com Geraldo. Isto ocorreu pouco tempo antes de minha partida. Eram beliches de dois andares. No primeiro beliche, embaixo, dormia Antonio, o inspetor, e em cima um desconhecido. No segundo, dormia Geraldo, em cima, e aí passei a dormir também. Em baixo era um negro magro e alto, lembro que gostava muito de mim. Ali ficava eu a ouvir a conversa dos grandes, até desaparecer no sono. Algumas vezes, o inspetor dava a palavra final:
Bom, já falamos demais, vamos dormir.
E tudo silenciava.
Certa noite, fui acordado por Geraldo e ouvi gritos:
Geraldo, Geraldo, seu irmão tá me mijando!
Levantei-me rápido, mortalmente envergonhado.
Na noite seguinte, tive medo de subir no beliche. Encafuei-me num canto e comecei a rezar, tentando não fazer barulho. Tinha vergonha de ouvir alguma zanga, tinha vergonha de me levarem pro outro dormitório, morria de vergonha e não fazia, por isso, o menor ruído. Foi uma espera atroz, as ave-marias se repetindo, tropeçantes e bêbadas.
Geraldo, cadê seu irmão?
Ué! Será que ele foi pro outro dormitório?
Está aqui do lado, encolhidinho.
Eu subi devagarinho, o preto me consolou sorrindo, Geraldo falou alguma coisa que inundou minha alma de luz, eu deixei cair a carga da inútil agonia e dormi extenuado.
Sucedeu, mais tarde, algo, para que tenha havido o desaparecimento de todos os cobertores? Algum castigo, será? Por que nos últimos meses não tínhamos cobertores. Quando isto aconteceu, eis que estou novamente dormindo sozinho. Todos passaram a adotar o mesmo expediente: os colchões eram então muito velhos, de seus buracos caía o pozinho do capim esmigalhado. Era só pegar a metade dos pés e trazê-la para cima do corpo bem encolhido. O braço ficava fazendo peso sobre o colchão. Não funcionava como o cobertor, mas era melhor do que deixar o corpo entregue aos calafrios e tremores. Difícil era com colchão novo. Lembro de uma vez em que eu o puxava e ele voltava como mola. Era gostoso o cheiro de capim fresco, era bom o cheiro do pano, mas ele não aderia ao corpo como aqueles velhos, esburacados, que nos enchiam aos poucos com um pozinho amarelado.
Difícil também era coçar as mordidas dos percevejos. Eles passeavam lentos, faziam cócegas, a gente conseguia acompanhar o trajeto e o formigar das patinhas pelo corpo. Então vinha um ardor e a mão ia até lá e o colchão voltava para baixo.
As noites demoravam a acabar.

garças e abutres chegados da terra do urubu-rei, romance de Jorge Teles, está sendo publicado em capítulos.

Para ler o capítulo anterior.

.

2 Comentários para “garças e abutres chegados da terra do urubu-rei. capítulo 5”

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *