A alegria epiléptica

É afro­di­síaca mesmo que quem a sinta não saiba quem raio seja Afro­dite. Falo da grande ale­gria, daquela que já não cabe no corpo, dessa ale­gria que nos estre­mece, enche e esva­zia os pul­mões. A ale­gria con­vulsa. Ima­gi­nem um campo de pri­si­o­nei­ros. Jim, um miúdo inglês, cres­ceu ali, meio-protegido, meio-abusado, por dois cor­ré­cios ame­ri­ca­nos. Cres­ceu entre o des­dém e a humi­lha­ção dos guar­das japo­ne­ses.

O campo de pri­si­o­nei­ros já é o deserto de toda ale­gria. Mas o campo de pri­si­o­nei­ros que sofre o ata­que da nossa pró­pria avi­a­ção é o pan­de­mó­nio dos sen­ti­men­tos, a lágrima de san­gue que trans­borda do cálice. Só o Pai que sabe­mos tem a cru­el­dade de dar esse cálice a um Filho. É o que acon­tece em Empire of the Sun, filme de Ste­ven Spi­el­berg. Há um ata­que ali­ado. Um Chris­tian Bale novi­nho, o actor que dá corpo a Jim, corre eufó­rico para o telhado meio-destruído de uma das cons­tru­ções do campo de con­cen­tra­ção.

Lá em cima, salta, abraça-se a si mesmo, treme de exci­ta­ção, res­pira forte para não sufo­car e explode num grito e num riso epi­lép­ti­cos. O mundo suspende-se, o movi­mento quase pára para dei­xar voar a beleza fan­tás­tica de um avião de fogo e morte.

O pin­dé­rico ingle­si­nho sobre­vi­vente berra: “P-51 Cadil­lac of the skies”. Vénus quando era vir­gem, Deus nosso senhor, a ino­mi­ná­vel Beleza, não seriam sau­da­dos com mais exal­ta­ção e exul­ta­ção. Jimmy salta de cos­tas, salta de frente, enquanto as bom­bas reben­tam com tudo à sua volta. “P-51 Cadil­lac of the skies”, ó ale­gria de um catano: o fogo, a morte, a des­trui­ção, sabem-lhe a vitó­ria. O avião dos seus sonhos, que os seus dedos quase tocam fisi­ca­mente, arrasa o mundo em escom­bros onde sobre­vive. Tudo morre, mas tudo morre para que ele renasça. A ale­gria con­vulsa, epi­lép­tica, é pri­vi­lé­gio de cri­ança. Tem de ser inau­gu­ral. Lembro-me da minha pri­meira vez, dos sin­to­mas e do devas­ta­dor ata­que. Conto.

A pri­meira vez que eu vi mesmo o mar foi já no meio do Oce­ano Atlân­tico. De Angola, o meu pai cha­mava os meus 5 anos e lá iam eles agar­ra­dos à saia da minha mãe e a toque de caixa da minha irmã. O pouca-terra, pouca-terra, numa tarde de cere­jas ver­me­lhís­si­mas, trouxera-nos da Beira fria, farta e feia. Em Lis­boa, Cais da Rocha, tínha­mos entrado no Vera Cruz, então sofis­ti­cado tran­sa­tlân­tico. Des­ce­mos logo ao cama­rote e quando vol­tá­mos a subir – no dia seguinte? –cercava-nos um vasto tapete ondu­lado, de um azul inú­til e livre. Flu­tuá­va­mos num infi­nito len­çol osci­lante: Hou­dini tinha escon­dido a terra.

Os pul­mões não me cabiam no peito de con­ten­tes; em riso e lágri­mas até pelos olhos os pul­mões me saíam. Dizem que é a ple­ni­tude. Gos­tava de me lem­brar melhor, se era igual o azul de céu e mar, se havia vento, quase nenhu­mas nuvens, e se can­ta­vam sereias ou sonhava já contigo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

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