Uma da tarde, quase duas

Uma da tarde, quase duas. Hora de ficar em casa, sem inventar.

Hora – por exemplo – de almoçar. Salada, arroz, feijão, couve, angu. Ah, pimenta. Ah, malagueta.

Hora – quem sabe? –, de ligar o computador. Leitura de uma crônica, de outra, notícias de um amigo, de outro. De um filho.

Hora – talvez – de ligar a tevê: mais um ministro, menos um ministro, que diferença faz? Mais uma rebelião, sei lá quantos atropelamentos, que mundo é esse? Frio, calor, chuva, vento, tudo junto, no mesmo dia, quem é que entende?

Hora de ouvir uma música, qualquer uma – “tu pisavas nos astros distraída” –, versos de poetas que, desde sempre, sintonizaram o mundo, quem não se lembra?

Uma e meia da tarde, quase duas, invento.

Bolsa no ombro, tomo o rumo do supermercado. Mesma rua, três quadras. Quase ao lado.

Rua cheia, almoços terminando, pessoas voltando ao trabalho, mulheres produzidas, homens engravatados, carros, buzinas, calor, tempo seco, cadê a chuva, parece que só vai chover quando o mundo acabar, pô, que sede.

Entro numa lojinha de nada, entrada de um restaurante natural, pequeno, escondido, lá no fundo:

— Uma garrafinha de água, por favor. Ah, sem gás. Ah, sem gelo.

Christian – rua pequena, todos nos conhecemos – me entrega o troco, centavos.

Carteira na mão esquerda, escorrego a bolsa pelo braço esquerdo, e sinto um vento voando.

— Pô! Aquele menino levou minha bolsa!

Três ou quatro pessoas, solidárias, ameaçam correr. Outras, assustadas, não sabem nem pra onde olhar.

Desconsolada, olho minhas mãos, desconsoladas. Na direita, garrafa de água sem gelo e sem gás. Na esquerda, carteira com documentos, protocolo pra buscar um passaporte que me deu mais trabalho do que mereço, talão de cheques, anotações, três notas de vinte, duas de cinqüenta. Ah, fotos de filhos, que ninguém é de ferro.

Na bolsa que disparou Alameda Campinas afora e abaixo, três objetos queridos. Um, lembrança de gente amiga. Dois, lembranças de mim.

Há alguns anos, em andanças pela Espanha, minha amiga Sonia Junqueira pensou em mim. O chaveiro, uma evocação à tragédia de Guernica, guardava todas as minhas chaves – casa, escritório, fazenda, gaveta, isso, aquilo –, um exagero.

Há alguns muitos anos, em andanças pela Alemanha, pensei em mim quando vi um porta-moedas sendo vendido no meio da rua, feirinha de domingo, cidade pequena – Wiesbaden –, nem sei como ainda me lembro. Ah, sei que sempre me lembrarei das milhares de folhas amareladas sob as árvores, outono inesquecível.

Há três, quatro anos, em andanças pela Internet, pensei em mim ao encontrar uma bolsa literária. Explico: bolsa simples, quase sacola. Na frente, homenagem a cinco escritores nacionais: Érico Veríssimo, Machado de Assis, José Lins do Rego, Jorge Amado, Graciliano Ramos. Junto ao nome de cada autor, o nome de um de seus livros.

Pensei em mim por causa de Graciliano/Vidas Secas.

Uma da tarde, quase duas, vento voando, Graciliano, Wiesbaden e Guernica dispararam Alameda Campinas abaixo e afora.

Tempos secos. E vidas.

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.

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