Relíquia sem cofrre

Passaporte vencido, lá fui eu em busca de um novo. Com preguiça, confesso.

— Acesse o site da Polícia Federal, é fácil –, disseram.

Obediente, obedeci. Fácil, sim. Só ler, entender, imprimir.

Imprimi tudo: taxa a ser paga sei lá que dia, em que banco, comparecimento sei lá que hora, em que lugar. Documentos? Sei lá quantos.

Li, reli e treli a lista de documentos. Mais uma vez, decorava.

Passaporte antigo, RG, CPF, título de eleitor com aqueles papeizinhos – facílimos de perder – provando que votei nos dois turnos, certidão de casamento. Tudo original.

Fui ao banco, paguei a taxa, guardei o recibo com o maior cuidado – e o medo de perder, de não ter mais jeito? –, comecei a contar os dias – contagem regressiva – pro dia agendado. Sessenta.

— Tanto tempo assim? – se espantaram.

Tanto tempo assim, ordenou a Internet. Sessenta dias, ou nada. Fazer o quê? Sessenta dias.

Contagem regressiva terminada, véspera do sexagésimo dia, lá fui eu, já madrugada, juntar os documentos. Todos originais.

Com medo de cometer sei lá que erro, pedi ajuda a um dos filhos. Que me socorresse, ainda que – era visível –, caísse de sono.

— Tá tudo certo, mãe, fica tranqüila.

— É que tenho medo da polícia, filho.

— Ah, mãe, vamos dormir, anda!

No sexagésimo dia, lá fui eu, sei lá quanto tempo de táxi, o valor eu sei, quarenta e cinco reais, lá fui eu, minuto a minuto abrindo o envelope, conferindo, polícia é polícia, o que será que ia ser de mim?

— Essa certidão é cópia.

— Cópia, como?

— Cópia.

— É a que tenho em casa, há milhares de anos.

— Cópia.

— Tá vendo? Amarelada, rasgada, antiga, batida à máquina, nem existia computador! Mais de quarenta anos!

— Cópia. A senhora volta amanhã. E traz o original.

— Se os outros documentos, todos originais e atualizados não servem pra nada, se votei à toa, por que, então, vocês não exigem apenas essa bendita certidão? Se só ela fala a verdade, pra que esse aparato todo?

— A senhora volta amanhã.

Polícia é polícia. Falou, tá falado. Obediente, obedeci. E tome táxi.

Na conversa-desabafo com o motorista, descubro que isso acontece com todos, todos os dias. Aliás, com todas. A exigência é só para as mulheres. Não todas. Apenas aquelas que tiveram o nome modificado com o casamento. Ah, se eu soubesse.

No sexagésimo primeiro dia, manhã cedinho, lá fui eu – quarenta e cinco reais –, buscar os caminhos da Lapa de Baixo, fim do mundo. Do meu mundo.

Com medo, olhos firmes fingindo coragem, exibi outra folha amarelada, antiga, batida à máquina. Mesma idade da outra, mais de quarenta.

Na véspera, tarde da noite, meu filho ao lado, por mais que analisássemos, nada encontramos que pudesse distinguir uma da outra. Levei as duas. Garantia. Polícia é polícia.

Sem uma palavra, o rapaz, nem vinte anos, rosto fino, pálido – doente? –, segura a folha antiga, mais de quarenta, e, sem uma palavra – milagre, viva! – coloca-a na copiadora.

Cópia nova na mão, ele me devolve a bendita, sei lá se original ou não, melhor não pensar mais em nada disso, só passar pra outra sala – foto, impressões digitais –, voar pra casa, guardar aquela relíquia – que não sabia que tinha –, no cofre que nunca tive.

Guardar – ou esconder – até o próximo passaporte. Ou as próximas encarnações. Quem sabe – se Deus me ajudar, e os anjos também –, ainda nasço filha de presidente?

Este artigo foi originalmente publicado no primeiroprograma.

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