O que fica

São as lembranças, pequenas ou grandes, recentes ou longínquas, como a primeira recordação de estar vivo. Pés descalços na terra da cidadezinha que continua igual ao que era há mais de meio século. A casa de tantos meninos e meninas, cada qual nascido em um lugarejo de Minas. O contato sensorial com o mundo, logo acrescido dos primeiros conhecimentos. A escola onde imperava Lili e as lições de alfabetização. A aritmética, infância da matemática, que nunca foi de assustar e sempre é útil, indispensável.

Venho recolhendo há anos os carinhos, abraços e beijos que recebi. Guardo-os no meu cofre interior. O amor bateu na porta e com ele vieram filhas, experiência intransferível, intraduzível, impossível de explicar.

Acenos para a importância de estar no mundo e se reproduzir. Os sorrisos que Clara me dedica, jóias da mais pura humanidade, me enchem de amor à vida. E o que me dará o seu irmão, Lucas, que está chegando? Certamente mais compromissos amorosos, mais satisfação, mais contentamento.

Ando pelas ruas da cidade e encontro amigos que me dizem frases que vêm nas horas certas, carregadas de afeto e companheirismo. Olho para trás e não encontro nenhum motivo de arrependimento. As canções e a poesia, a música e a cultura me empurram para a frente e faço projetos de trabalho. As pessoas, as que me cercam e me tocam, me dão a certeza de que não é hora de passar o bastão. Seguro firme o comando de minha existência com a convicção de que ainda é tempo de contribuir.

Assumo minha responsabilidade para com os que eu amo. A cidade grande, que me assustou e deslumbrou, quando aqui vim parar, vejo-a como uma companheira antiga. Dentro de sua geografia eu me fiz. Ela cresceu em tamanho e problemas, mas eu tento compreendê-la. Tal qual a Terra que, dentro de seu girar constante, traz no ventre uma humanidade cada vez mais veloz e violenta.

Certo que a desumanidade sempre existiu, é só conhecer um pouco de história. Mas o ritmo dos acontecimentos, a rapidez de hoje é espantosa, a ponto de nos prometerem um avião que nos levará ao Japão em quatro horas. Nunca mais um imperador a sair do Rio de Janeiro, de carruagem e cavalos, a cruzar as terras mineiras e bater com sua comitiva em Minas Novas. Os mineiros tiveram tempo de construir um prédio de pé direito tão alto que tornou possível que Pedro II só descesse da condução já dentro da moradia.

Hoje o caminhar é outro, em busca da saúde e da natureza. Tudo o mais corre. A alma é consciência, conhecimento, cultura e memória. É o que construímos ao longo da existência. Esse baú de guardados às vezes sofre perdas. O que se vai é imenso e dói, mas ficam novas pessoas, novos prazeres, novos presentes.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em junho de 2011.

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