Há mais de três anos os agentes do setor elétrico vêm discutindo o tema da prorrogação das concessões de serviço público em razão da grande concentração de vencimentos de prazo de contratos em 2015. Apesar da importância do assunto, que afeta cerca de 25% do parque hidrelétrico do País e 80% da rede básica de transmissão, o governo até o momento não anunciou sua decisão: se vai prorrogar as concessões, o que exige mudança legislativa, ou licitar, como ditam as normas atuais.
Nas últimas semanas, entretanto, notícias isoladas vêm sugerindo que a decisão foi tomada no sentido da prorrogação. Ela já era esperada por muitos, porque dificilmente um governo de cunho estatizante submeteria os principais ativos do grupo Eletrobrás a um processo de privatização implícito na opção pela licitação. Aqui a decisão foi política.
Tais notícias, no entanto, nada dizem sobre como será feita essa prorrogação. E aqui a decisão tem de ser técnica, pois dos detalhes depende o futuro do setor. Nenhum comentário foi feito ainda sobre questões complexas como a avaliação da depreciação dos ativos, o tipo de renovação onerosa que inevitavelmente correrá, o preço da energia a ser vendida com a renovação dos contratos, a destinação dessa energia, e assim por diante.
Mas um mantra vem sendo repetido pelas autoridades do setor: a renovação das concessões contribuirá significativamente para a modicidade tarifária. Pode até ser um desejo do governo, mas, dadas as condições de temperatura e pressão atuais, dificilmente ele será atendido. E o custo de se impor esse objetivo a qualquer preço pode ser muito superior aos benefícios obtidos sobre a tarifa efetivamente paga pelo usuário final do serviço.
Meu ceticismo tem distintas origens. Primeiro, porque não é verdade que as usinas que estão com contratos as vencer estejam todas depreciadas. Criou-se esse mito de que o consumidor já pagou a conta, mas o próprio órgão regulador, em casos recentes de pedidos de prorrogação, reconheceu ativos a serem depreciados de usinas muito antigas. Ou seja, antiguidade não garante depreciação integral dos ativos. O tema é complexo e merece ser tratado como tal.
Segundo, porque o governo vem usando como paradigma preços decrescentes dos leilões de energia, criando a falsa ilusão de que é possível obter custos marginais decrescentes na geração de energia. Este resultado contraria lei básica de economia e o mágico não pode acreditar na própria mágica. Há de haver uma explicação. E ela é simples: levando em consideração os contratos para o mercado livre em cada leilão e as características de cada usina, é fácil verificar que o preço médio e os custos de cada empreendimento não são cadentes. Ressalte-se que em muitos casos os leilões usados como paradigmas são projetos estruturantes com características muito particulares, destacando-se: são projetos de desenvolvimento regional e, por isso, receberam condições de financiamento extremamente favoráveis do governo federal.
Terceiro, porque a participação do preço dessa energia a ser renovada na composição final da tarifa é muito pequena. Ou seja, estrangular financeiramente as concessionárias não é a forma mais eficiente de reduzir a tarifa.
Por último, as tarifas de energia elétrica no Brasil estão entre as mais caras do mundo. Isso não é bom, claro. O usuário paga muito por um serviço essencial, a indústria nacional perde competitividade e os índices de preços ficam pressionados. Reduzi-las deve ser o objetivo permanente do governo. A questão é como.
De cada R$ 100 pagos na conta de luz, metade se divide entre a remuneração dos serviços de transmissão e distribuição e a compra de energia – esta última parcela responde por cerca de 25% da tarifa. A outra parte vai para encargos e tributos do sistema, com o agravante de que não há transparência na utilização dos imensos recursos arrecadados. Ou seja, o usuário não sabe o que está financiando.
Como os contratos de concessão a serem prorrogados respondem por 30% da energia comercializada no mercado cativo, fazendo uma conta de padaria se verifica que apenas 7,5% do total da conta de luz poderá ser influenciado pelo processo de prorrogação. E isso se 100% dos contratos renovados forem para mercado cativo. Mas se mantivermos a participação do mercado livre de hoje, de 25%, nesses contratos, esse porcentual se reduziria para algo como 5,5%.
Preços artificiais nos contratos a serem prorrogados trazem impactos negativos sobre a saúde das empresas, com consequências sobre sua capacidade de investimento, afetando em última análise a própria segurança do sistema. Ou seja, a conta deverá ser paga por alguém, se não for pelo usuário, será pelo contribuinte, porque o Tesouro terá de capitalizar a Eletrobrás de forma a evitar sua perda de capacidade de investimento, com impacto negativo sobre a política fiscal e os juros. Mas devemos lembrar que empresas estatais estaduais do porte da Cesp, da Cemig e da Copel também possuem importantes ativos com contratos a vencer e a União, ainda que dona dos ativos concedidos, não pode impor prejuízo aos Tesouros estaduais.
Ao mesmo tempo que a espada pende sobre a cabeça dessas empresas, o governo aumentou o peso dos encargos nas tarifas, renovando a Reserva Global de Reversão (RGR). O único movimento no sentido de desoneração da energia feito pelo governo federal foi começar uma campanha para a redução do ICMS, o que é positivo, mas sobre o qual não tem nenhuma ingerência, já que se trata de imposto estadual.
Muito melhor do que tornar inviáveis importantes empresas geradoras de energia do País seria começar a desonerar de fato o serviço de energia elétrica, atuando sobre os encargos e tributos que incidem sobre ele. Mas o governo parece preferir puxar o piano a andar com o banquinho.
Este artigo foi publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, em 22/6/2011.
Está sendo republicado aqui com autorização da autora.
Elena Landau, economista, advogada, é sócia do Escritório de Advocacia Sérgio Bermudes e consultora da Abiape.
Um comentário para “O piano e o banquinho”