O clipe mais emocionante da história

É emocionante, é de arrepiar, de fazer os olhos marejarem. Há muito tempo eu não via uma coisa tão absolutamente emocionante.

Não deixem de ver o clipe de quase dez minutos em que uma cidade inteira se une para cantar “American Pie”, do grande (e muito menos conhecido do que deveria) Don McLean.

http://www.youtube.com/watch?v=ZPjjZCO67WI

É – como me disse Mary agorinha, ao telefone, depois que viu o clipe e parou o Escritório para todo mundo ver e se emocionar – uma daquelas coisas que fazem a gente acreditar que a humanidade talvez não seja, afinal de contas, uma invenção que deu errado.

Sob o impacto do clipe, resolvi escrever alguma coisa aqui sobre… Sei lá: sobre “American Pie”.

Fiquei sabendo a existência do clipe agora há pouco, por uma mensagem do meu amigo Elói Gertel, em que ele transcreve uma informação dada pelo Kibe Loco:

A história é a seguinte: um artigo da revista “Newsweek”, uma das mais famosas do mundo, classificou a cidade americana de Grand Rapids, no Michigan, de “moribunda”.

Revoltados, moradores e autoridades da cidade se mobilizaram e, em vez de apelar aos tribunais, recorreram à… música. Isso mesmo! Música.

No último dia 22, a cidade parou (literalmente) para gravar um clipe da música “American Pie”, de Don McLean. Entre bandas, desfiles, carreatas, efeitos especiais, helicópteros e até um casamento, 5 mil pessoas foram envolvidas.

O resultado foi uma resposta à altura e um filme que críticos americanos já estão considerando como “o maior clipe de todos os tempos”…

É um show – de civilidade, de força política, de vontade, de determinação. E de cinema: é tudo um único plano-seqüência! É de deixar Brian De Palma babando de inveja.

E justamente Grand Rapids, a cidade em que viveu, durante seis meses, num desses intercâmbios culturais, minha sobrinha torta Rejane, gracinha de pessoa, sobrinha da Mary.

Uma maravilha de canção, o hino de uma geração

Muito provavelmente eu não estaria tão emocionado se fosse outra a música que os habitantes de Grand Rapids tivessem escolhido. “American Pie” é uma das minhas canções favoritas. Foi lançada primeiro em compacto, em 1971, mas era tão longa – 8m37s – que teve que ser dividida em duas partes, ocupando os dois lados do disco. Depois seria a faixa-título do LP do cantor e compositor daquele ano. São dez faixas, apenas – todas ótimas. O compacto ficou 17 semanas na lista dos mais vendidos da Billboard – e, durante quatro semanas, no primeiro lugar.

Em 2000, Madonna gravaria a música, para a trilha sonora de seu filme The Next Best Thing, no Brasil Sobrou Pra Você. É uma gravação boazinha – embora a estrela tenha cometido o sacrilégio de cortar fora várias estrofes da canção.

O dia em que a música morreu, para Don McLean, foi o dia em que ele soube que Buddy Holly tinha morrido, num acidente de avião, no dia 3 de fevereiro de 1959, aos 23 anos de idade.

“That will be the day that I die”, que McLean repete, é uma citação direta de uma das diversas belas, inocentes, juvenis, maravilhosas canções compostas por Buddy Holly em sua passagem rápida pela Terra, “That’ll be the day”.

Buddy Holly influenciou meio mundo que veio depois. Ele está na trilha sonora de American Graffiti, que George Lucas fez em 1973, em homenagem aos anos 50 de sua juventude. Francis Ford Coppola o homenagearia com o filme Peggy Sue Got Married – o mesmo título de uma música de Buddy Holly. O filme, de  1986, com uma Kathleen Turner deslumbrante e um Nicolas Cage bebê, no Brasil se chamou Peggy Sue, Seu Passado a Espera.

Os Beatles gravaram uma de suas músicas, “Words of Love”, no disco de 1964, Beatles For Sale – e é um cover literal, é a reprodução idêntica da interpretação de Buddy Holly, exatamente a mesmo entonação de voz, os mesmos acordes da guitarra. O conjunto de Buddy Holly chamava-se The Crickets – os grilos. Como todos sabem, beetle é besouro e Beatle é uma genial sacada que mistura beetle com o beat, batida. Os grilos, Texas, anos 50, os besouros, Inglaterra, começo dos 60.

Don McLean homenageia Buddy Holly – assim como Coppola, os Beatles, Paul Simon…

Paul McCartney é tão apaixonado por Buddy Holly que comprou os direitos das músicas do jovem músico texano, para administrá-los em sua empresa, a MPL Communications, Ltd. Mais tarde os direitos das músicas dos Beatles seriam comprados por Michael Jackson. E Paul Simon falaria disso tudo em uma beleza de canção, “Old”, em seu disco de 2000, You’re the one:

The first time I heard “Peggy Sue”

I was 12 years old

Russians up in rocket ships

And the war was cold

Now many wars have come and gone

Genocide still goes on

Buddy Holly still goes on

But his catalog was sold

A primeira vez que Simon ouviu “Peggy Sue”, tinha 12 anos, e a guerra era fria; muitas guerras vieram e se foram, o genocídio continua, Buddy Holly ainda está aí, mas seu catálogo foi vendido.

Acho uma delícia essa coisa das homenagens de artistas a outros artistas. E “American Pie”, um hino de amor ao rock’n’roll de Buddy Holly, é cheia de citações a músicos, atores – “o casaco que ele tomou emprestado de James Dean”. E em torno da música formou-se um mundo de citações e coincidências, um novelo fascinante, que tenho vontade de juntar aqui nestas mal traçadas, minutos depois de rever pela segunda ou terceira vez o clipe que o povo de Grand Rapids fez como desagravo à Newsweek.

Uma dessas coincidências é fascinante: em dezembro de 1980, quando John Lennon foi assassinado, a Newsweek fez uma capa brilhante, uma bela foto de John em preto-e-branco, o nome dele, as duas datas, 1940-1980. A Time, a rival que a Newsweek nunca conseguiu suplantar, deu na capa um desenho colorido de John, com o título  “When the Music Died”.

A rival da Newsweek usou a frase de “American Pie” para homenagear John Lennon! E agora, em 2011, a Newsweek chamou Grand Rapids de “moribunda”, provocando essa reação espetacular de toda a cidade, usando exatamente a mesma música! (A memória me traiu: achei que a frase “When the Music Died” tivesse sido usada pela Newsweek, o que seria mais fascinante ainda. Mas não: foi a Time.)

Homenagens, coincidências. Uma das canções mais conhecidas de Roberta Flack, a cantora negra de voz mais branca que há, “Killing me Softly With His Song”, composta por Lori Lieberman, cantora e compositora que, quando jovem, viu um show de Don McLean, e era como se ele tivesse enxergado a alma dela, como se tivesse descoberto as cartas dela e lido os textos alto para todo mundo… (A canção foi registrada como sendo de autoria de Charles Fox e Norman Gimbel – sim, ele mesmo, um dos americanos que fizeram versões de clássicos da bossa nova para o inglês, mas essa é outra história). “Killing me Softly” é uma homenagem a Don McLean. A canção, Don McLean, e de quebra Buddy Holly, seriam homenageados na gostosa comédia About a Boy, no Brasil Um Grande Garoto, com Hugh Grant, Toni Collette e Rachel Weisz, baseado em livro de Nick Hornby.

Releve-se o tom patrioteiro – é uma beleza de canção

Há um tom patrioteiro um tanto bobo, um tanto juvenil, na letra que Don McLean escreveu – de revolta contra a invasão do rock britânico, Beatles, Rolling Stones. Mas a beleza da música é tão fabulosa que dá pra gente esquecer essa coisa patrioteira. Don McLean fez o hino de uma época, de uma geração, de uma nação.

A letra está coalhada de belíssimas imagens, de sacadas poéticas – “Uma geração perdida no espaço”. “Vi Satã rir de felicidade no dia em que a música morreu.” “Você escreveu o Livro do Amor? Tem fé no Deus lá em cima? Você acredita em rock’n’roll? Acha que ele pode salvar sua alma? Você pode me ensinar a dançar bem devagarinho?” “E enquanto Lennon lia um livro de Marx, o quarteto ensaiva no parque e nós cantávamos cânticos fúnebres no escuro no dia em que a música morreu.” “E enquanto eu o observava no palco, minhas mãos estavam cerradas com raiva. Nenhum anjo nascido no inferno poderia quebrar aquele encanto de Satã.” “E nas ruas as crianças gritavam, os amantes choravam e os poetas sonhavam, mas nenhuma palavra era dita. Os sinos da igreja estavam todos quebrados. E os três homens que eu mais admirava, o pai, o filho e o Espírito Santo, pegaram o último trem para o litoral no dia em que a música morreu.”

Aliás, o garoto que canta esse verso acima, no clipe, trocou “o último trem” por “o último ônibus”.

A íntegra da letra vai mais abaixo. Mas antes gostaria de dar alguns endereços de clipes interessantes. The Meaning of American Pie, maravilhoso, vai explicando tudo o que diz a letra, dando todas as informações históricas, com belas imagens, a partir dos destroços do avião em que Buddy Holly morreu.

Há uma gravação de imagens que deve ser raríssima de Buddy Holly e The Crickets em 1957, cantando “That’ll be the day”, muito provavelmente num programa de televisão.

O YouTube tem John Lennon cantando algumas músicas do repertório de Buddy Holly, a começar por “Peggy Sue”, a primeira das duas canções de Buddy Holly sobre a personagem que inspiraria Francis Ford Coppola a fazer seu filme. A segunda canção é a que daria o nome ao filme, “Peggy Sue got married”. Esse clipe não tem imagens em movimento, só fotos – e inclui a voz chata da Yoko. Muito melhor é o clipe de 1975 em que Paul McCartney canta a mesma “Peggy Sue”, imitando a voz de Buddy Holly. E há ainda um clipe de Paul cantando “Words of love”, em 1985, com aquele jeitinho dele de quem não quer nada.

Como diz Paul Simon, o gênio: Buddy Holly continua aí.

O clipe de Madonna é de extrema competência.

Bem, e tem “Killing me softly with his songs”, com mil versões diferentes no YouTube. Há um clipe com belíssimas fotos em preto-e-branco e a gravação original em estúdio feita por Roberta Flack – linda, maravilhosa. Há uma apresentação de Roberta ao piano, com estranhas legendas em japonês – uma absoluta maravilha: ela passa realmente a impressão de que o cantor a estava matando suavemente com suas canções, como se ele a conhecesse no seu mais negro desespero, como se ele estivesse lendo as cartas secretas dela, diante do auditório.

E aí, já que cheguei até aqui, me permito uma viagem no politicamente incorreto. Por que seá que todo mundo se desbunda diante de Janis Joplin, e agora diante de Joss Stone, porque elas são brancas com voz de negra, e não se deslumbra que a negrérrima, maravilhosamente negra Roberta Flack tenha voz de branca?

Seguramente haverá muita gente – os que se dizem progressistas, politicamente corretos – que dirá que o clipe-happening de Grand Rapids é mais um exemplo dos males do capitalismo, do imperialismo que tem que ser derrotado a todo custo. Exatamente as mesmas pessoas, do mesmo tipo de cabeça, que comemoraram quando três mil inocentes foram mortas nos ataques terroristas às Torres Gêmeas.

Tá bom, esse tipo de gente existe. Mas o que o clipe de Grand Rapids significa é que, apesar de haver esse tipo de gente, ainda há esperança para a humanidade.

E fico imaginando o que Don McLean deve ter sentido ao ver este clipe.

Aí vai a letra:

American Pie

A long, long time ago…

I can still remember

How that music used to make me smile.

And I knew if I had my chance

That I could make those people dance

And, maybe, they’d be happy for a while.

 

But february made me shiver

With every paper I’d deliver.

Bad news on the doorstep;

I couldn’t take one more step.

 

I can’t remember if I cried

When I read about his widowed bride,

But something touched me deep inside

The day the music died.

 

So bye-bye, miss american pie.

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

And them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

Singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

Did you write the book of love,

And do you have faith in God above,

If the Bible tells you so?

Do you believe in rock ’n roll,

Can music save your mortal soul,

And can you teach me how to dance real slow?

 

Well, I know that you’re in love with him

`cause I saw you dancin’ in the gym.

You both kicked off your shoes.

Man, I dig those rhythm and blues.

 

I was a lonely teenage broncin’ buck

With a pink carnation and a pickup truck,

But I knew I was out of luck

The day the music died.

 

I started singin’,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

Them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

And singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

Now for ten years we’ve been on our own

And moss grows fat on a rollin’ stone,

But that’s not how it used to be.

When the jester sang for the king and queen,

In a coat he borrowed from james dean

And a voice that came from you and me,

 

Oh, and while the king was looking down,

The jester stole his thorny crown.

The courtroom was adjourned;

No verdict was returned.

And while lennon read a book of marx,

The quartet practiced in the park,

And we sang dirges in the dark

The day the music died.

 

We were singing,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

Them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

And singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

Helter skelter in a summer swelter.

The birds flew off with a fallout shelter,

Eight miles high and falling fast.

It landed foul on the grass.

The players tried for a forward pass,

With the jester on the sidelines in a cast.

 

Now the half-time air was sweet perfume

While the sergeants played a marching tune.

We all got up to dance,

Oh, but we never got the chance!

`cause the players tried to take the field;

The marching band refused to yield.

Do you recall what was revealed

The day the music died?

 

We started singing,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

Them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

And singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

Oh, and there we were all in one place,

A generation lost in space

With no time left to start again.

So come on: jack be nimble, jack be quick!

Jack flash sat on a candlestick

Cause fire is the devil’s only friend.

 

Oh, and as I watched him on the stage

My hands were clenched in fists of rage.

No angel born in hell

Could break that satan’s spell.

And as the flames climbed high into the night

To light the sacrificial rite,

I saw satan laughing with delight

The day the music died

 

He was singing,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

Them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

And singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

I met a girl who sang the blues

And I asked her for some happy news,

But she just smiled and turned away.

I went down to the sacred store

Where I’d heard the music years before,

But the man there said the music wouldn’t play.

 

And in the streets: the children screamed,

The lovers cried, and the poets dreamed.

But not a word was spoken;

The church bells all were broken.

And the three men I admire most:

The father, son, and the holy ghost,

They caught the last train for the coast

The day the music died.

 

And they were singing,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

And them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

Singin’, “this’ll be the day that I die.

“this’ll be the day that I die.”

 

They were singing,

“bye-bye, miss american pie.”

Drove my chevy to the levee,

But the levee was dry.

Them good old boys were drinkin’ whiskey and rye

Singin’, “this’ll be the day that I die.”

3 de junho de 2011

 

13 Comentários para “O clipe mais emocionante da história”

  1. Um, você não brinca em serviço. Emocionei-me com o clipe e agora com o teu texto acima. Cara, você pôs pra quebrar. Parabéns e grande abraço

  2. Só dá pra repetir o primeiro comentário: em cima de queda tombo! Seu texto turbina a emoção deixada pelo clip. Parabéns!!!!

  3. Poxa Sérgio! Que maravilha de texto e de abordagem.
    Chorei com o clipe e engasgei com seu texto, com sua vibração e com a sinopse da historia do McLean.
    Esta foi uma das músicas que mais me marcou durante meus 15 anos de permanencia nos EUA e achei que já tinha visto tudo o que ela poderia dar, mas vejo que não. A música é realmente impressionante! Nos faz entender a dimensão exata da grandeza da arte musical e faz a gente realmente ainda acreditar um pouco na raça humana.

    Parabéns!

  4. Que texto! Que música! Que clipe(s)!
    Eu não conhecia a história por trás da música apesar de sabê-la de cor e salteado! Adorei! É realmente emocionante ver a união da cidade para um resposta a altura, ainda mais conhecendo e tendo vivido -mesmo que por pouco tempo – lá.
    Beeijos da sobrinha! ;D

  5. Emocionante texto! Vi o clip com o Márcio e êle fez a tradução da musica. Maravilha!Achei a cidade linda, pois quando estivemos lá, nevava muito. Não dava para distinguir tão bem o colorido do lugar. Adorei
    Sogrinha

  6. Muito interessante o texto e melhor ainda o clipe do qual não conhecia!
    Sou apaixonado por antigas histórias, principalmente como estas que eu sempre queria saber mais sobre este assunto.
    Quando eu vi o filme La bamba, criança com 6 anos estava curtindo o filme e no final, sabendo do q acontece com Ritchie Valens, BUddy e Hooper eu queria saber mais da vida deles mas, naquela época era difícil.
    Hoje com internet, sei tudo, tenho clipes, músicas deles, adoro dançar elas em festa.

    Infelizmente, concordo que a música realmente morreu, acredito q o cenário mundial de música hoje em dia poderia estar diferente.
    Poderia escrever sobre eles o dia todo, queria saber mais porém, chega uma idade em que temos que trabalhar demais além da conta, :( aff.

    É Deus, tudo o Senhor sabe e quantas pessoas a este acontecimento ficaram triste. Cuide de cada família.
    Amém.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *