Filhos únicos

Mais de dez da noite, o ônibus deixa a rodoviária simples, no interior mineiro, e toma o rumo da maior cidade do país. Poucos metros adiante, procura o acostamento:

— O senhor tem passagem? – O motorista abre a porta para o vulto que, na estrada escura, agita os braços, pedindo que ele pare.

— Não, não tenho, mas…

— Então, nada feito, meu amigo. O ônibus está lotado.

— Mas, eu só vou até aqui bem pertinho…

— Nada feito. Com o ônibus lotado, nada feito.

— Mas, é um caso de urgência…

— Não insista, meu amigo!

— Mas, esse é o último ônibus…

O motorista, impaciente, ameaça fechar a porta.

— E daí, se é o último ônibus? Não posso fazer nada!

— Mas eu posso!

Tênis, jeans, camiseta da seleção brasileira de futebol, um jovem surge do fundo do ônibus e, passagem na mão, dispara pelo corredor.

Em seguida, mão no ombro do passageiro sem passagem que, aproveitando a distração do motorista, já estava dentro do ônibus, ele diz:

— Olha aí, cara, passagem pra São Paulo! É sua! E não precisa me pagar.

— Mas, eu só vou aqui pertinho…

— Que pertinho, que nada! Aproveita, cara! São Paulo!

— Devo estar ficando maluco – diz o motorista.

E, dirigindo-se ao desertor:

— Se você vai mesmo desembarcar, vamos logo! Tem bagagem no bagageiro?

— Bagagem? Tenho não! Só essa roupa aqui, que estou vestindo. E, sabe de uma coisa? Nem emprego eu tenho. E não tenho nada pra fazer em São Paulo, cara, nada.

— Pra que você tá indo pra lá, então?

— Pra ver se arrumo emprego, mas isso é só porque todo mundo fica falando, falando. Quero nada disso não. Quero é ficar aqui, cara. Não vou deixar minha mãe sozinha, de jeito nenhum. Sou filho único! Filho único, tá sabendo? Pensa bem, cara, tem sentido ela aqui, sem eu, e eu lá, sem ela?

O filho único abraça – efusivamente – seu salvador, deseja-lhe boa viagem – que pertinho, que nada! São Paulo tá te esperando! –, despede-se da platéia, aperta a mão do motorista e, dançando, ganha a estrada escura.

O motorista faz um sinal da cruz, fecha a porta que o separa dos passageiros, liga o rádio – e o ônibus – e, mais uma vez, ganha a estrada.

Poucos quilômetros adiante, um sinal estridente diz que ele deve parar:

— Ai, meu Deus, desse jeito, essa viagem não acaba nunca! E tenho mais de quinhentos quilômetros pela frente!

O ex-passageiro sem passagem, tranqüilo:

— Eu não falei que era pertinho?

— Pensei que o senhor ia pra São Paulo. Pensando bem, aquela passagem caiu do céu…

— São Paulo? De jeito nenhum!

— Qual o problema, meu amigo? Medo de arrumar emprego?

— Não, não! Emprego eu tenho, graças a Deus!

— Então?

— Também sou filho único!

Esta crônica foi originalmente publicada no primeiroprograma.

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