Femme fatale, sombras do gozo

O feminino sempre foi o obscuro da psicanálise. Freud inquietou-se a ponto de esbravejar: “o que quer a mulher?”, impossível resposta, afiançou Lacan, traduzindo a pergunta para um mais possível: O que quer uma mulher?

O feminino situa-se, psicanaliticamente, no limiar do gozo e não se traduz num dito. O feminino não tem registro. É a sombra. Uma incontornável oscilação, entre o culto à mulher como enigma e o ódio à mulher como mistificação. Ambas as posições apenas acentuam o desconhecimento da verdadeira questão: a feminilidade. Nessa perspectiva, não à toa é a sedução do feminino que emerge sempre como perigo e vertigem para os personagens dos filmes noir. A constante relação de atração e repulsão entre os protagonistas – geralmente detetive e uma mulher misteriosa – constitui uma das prementes características do gênero. E não é assim, sempre, a relação do neurótico com a possibilidade de gozo? Sente-se atraído por ele e o recusa, vislumbrando ali, no gozo, o mortal?

Os filmes noir dispensam apresentação. Retratos de sua época, apresentam um mundo de luz e sombra que dilui a moral maniqueísta – que dividia o mundo em bem e mal – em um jogo ambíguo em que a decadência, a desilusão e a incerteza são constituintes dos personagens. De forma reducionista, pode-se dizer que um típico filme noir apresenta uma série de particularidades: opera no cenário do submundo do crime; o (anti) herói é predominantemente um protagonista masculino que se vê envolvido com duas mulheres (ou com uma mulher que oscila entre os dois papéis, a mocinha inocente, devotada e leal e a femme fatal, ambígua, perigosa e excitante); o ambiente noir é predominantemente obscuro; o crime ou a ameaça dele são sempre presentes; o niilismo e pessimismo são intrínsecos a grande parte dos personagens; além disso, sob a influência do expressionismo alemão, o noir caracteriza-se tanto pelo uso particular da luz como, em termos narrativos, pela sofisticação e inovação no desenvolvimento dos enredos. Mais um pouco de clichês (deliciosos no gozo de repetir como em criança era bom a mesma história da mesma forma): ponto de vista dominante do protagonista masculino, aspectos conflitantes na narrativa e nas percepções dos personagens, uso sistemático de flasbacks e voz em off como modo de desconstrução e reconstrução da continuidade da história.

Uma das alegrias estéticas que encontro é, no noir, deparar-me com a realidade emergindo de forma onírica, com confrontos psicológicos tão frequentes quanto os físicos e o charmoso predomínio da ambivalência das intenções e gestos. Com narrativas formalmente marcadas pela desorientação e desconforto, com acentuada presença de comportamentos sociais aberrantes numa atmosfera intencionalmente dissonante, as narrativas noir não apresentam vencedores, vitórias ou possibilidades de redenção. O filme noir surge como teia de ilusões e de embustes que parecem conduzir à inevitabilidade da morte, acelerando esse processo tão humano. O noir um filme de morte. E morre-se em uma casa de espelhos, em múltiplas imagens e possibilidades de fim.

Esteticamente, os contrastes existentes no nível temático e narrativo se materializam nos filmes noir, privilegiadamente, nos altos contrates da luz. Como não lembrar Fellini? “a luz é a substância do filme e é porque a luz é, no cinema, ideologia, sentimento, cor, tom, profundidade, atmosfera, narrativa. A luz é aquilo que acrescenta, reduz, exalta, torna crível e aceitável o fantástico, o sonho ou, ao contrário, torna fantástico o real, transforma em miragem a rotina, acrescenta transparência, sugere tensão, vibrações. A luz esvazia um rosto ou lhe dá brilho.” Os filmes noir exacerbam esta concepção e apresentam o falso e o real unificados pela iluminação, com uso de contrastada fotografia em preto-e-branco, e de ângulos anti-convencionais, assim como de fontes isoladas de luz, profundidade de campo e locações naturais (isso não sou eu que digo assim da minha genialidade, é que fui ler sobre noir de tanto querer-lhe bem, em artigos científicos, dissertações, eita, tem um monte de material).

O espaço da tela nestes filmes se tornou mais escuro, denso e profundo. As sombras não se ausentam, mesmo quando o protagonista entra em um ambiente qualquer e acende a luz, as sombras se mantém próximas e ameaçadoras. Aliás, os filmes noir apresentam, além da utilização estilizada da luz, uma série de recursos que acentuam o clima claustrofóbico e, ao mesmo tempo, sedutor, constantes na narrativa. O caráter erótico e fatal da mulher, nos filmes, é potencializado pela luz de alto contraste que esculpe o rosto e as formas do corpo da mulher, acentua os brilhos de sedas, pedrarias, lamês, as texturas nos tecidos vestidos pelas heroínas potencializam ao máximo o brilho da luz sobre eles.

Uma peculiaridade dos filmes noir que me agrada é que, apesar dos protagonistas serem, em sua maioria, homens, é do fascínio das mulheres que se trata, é a centralidade do personagem feminino que se leva na memória. É a mulher o personagem mais agudamente astuto, inteligente, intrigante. Seja ela a femme fatale, seja a redentora que remete o protagonista à possibilidade de integração num mundo estável (quimera que se perde, é claro, no decorrer da trama). Sabe, não importa que a femme fatale seja recorrentemente destruída nos filmes, é ela que se lança, incólume e vencedora, na lembrança dos expectadores. No filme noir, a questão do feminino tão cara à psicanálise se apresenta em todas as suas matizes: o que quer esta enigmática mulher que sustenta, provoca e perverte o protagonista? Como encontrá-la – objeto de gozo – e sobreviver? De onde ela fala – fálicos que somos todos – e pra onde ela aponta – o Outro gozo, que a todos encanta e atemoriza. O noir joga luz e brilho no feminino apenas para, em contraste, recordarmos que é na sombra que se coloca o feminino, no que não pode ser nomeado mas vivido.

Há muitos e deliciosos noir (em tempo, Má Educação de Almodovar, segundo ele mesmo, é um noir). Tem noir até com a Marilyn (e é um filme muito interessante passado em tempo real, tal como Festim Diabólico). Tem Laura, uma aula de roteiro, direção e interpretações. Tem Bogart no que ele faz mais melhor: ser ele mesmo sendo outros tantos. Quem sabe faço uma lista…

(*) Luciana Holanda Nepomuceno, cearense, é professora da UFERSA, em Mossoró, na área de Psicologia e Metodologia Científica. Tem um texto exquisito, nas acepções do termo em espanhol, e uma energia inesgotável: é a autora não de um ou dois blogs, mas de três: Borboleta nos Olhos, Eu Sou a Graúna e Outras Borboletas. Nas horas vagas, colabora com um quarto e um quinto blogs, Estrangeiros na Terra e Só Miolo de Pote.

O texto acima foi publicado no Borboleta nos Olhos. Não me lembro de ter visto melhor, mais perfeita, mais rica definição de film noir, e por isso pedi a ela que me desse a honra de republicá-lo aqui.

Sérgio Vaz, maio de 2011.

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