Entra o urso

Como pode comover-nos o que não nos arranca um sorriso? Shakespeare usou um truque. No The Winter’s Tale, quando a tragédia é já insustentável, entra um urso. O espectador está entalado no drama pungente para onde três actos trágicos o empurraram, mas a vertiginosa surpresa de um urso carnavalesco liberta-o do AVC dramático com uma gargalhada salvadora. Ninguém aguenta a unicidade do drama, nem mesmo a CGTP. Aliás, era bom, que Passos Coelho se lembrasse de mandar entrar o urso!

Em suave, lembrei-me de Good Will Hunting. No filme, para ser tudo o que tem obrigação de ser, Matt Damon deve abandonar os amigos do peito. A personagem dele, que ele mesmo escreveu com Ben Affleck, nasceu na ferrugem, num meio trabalhador, sem mais horizontes do que ganchos nas obras, copos nos pubs. Mas uma shakespeareana inclinação genética dotou-o de excepcionais dons matemáticos. Cumpri-los, obrigará Damon a trair o caldo cultural da classe a que pertence. Cumprir-se é sofisticar-se, separar-se irreversivelmente dos amigos de rua, uns tipos foleiros, falhados, mas cuja humanidade ele adora. Para se cumprir, Damon tem de trair a classe de origem. Álvaro Cunhal, o nosso melhor comunista, deve ter gostado de ver o reverso do seu drama aqui retratado.

Estamos nisto e em vez do urso, entra a rapariga. Uma das coisas de que gosto em Matt Damon é que ele faz rir as mulheres dele. Está escrito, bem sei. Mas está escrito por estar escrito para ele. O modo de Matt Damon incarnar a masculinidade, do belíssimo Good Will Hunting ao recente e batoteiro Adjustment Bureau, obriga os argumentistas a dar-lhe cenas em que faz as mulheres felizes.

Não sei onde, li que a felicidade não é um direito, é uma obrigação. Damon ri-se para fazer as suas mulheres rirem-se. Talvez, por isso, em Good Will Hunting, a rapariga, Minnie Driver, exiba a certeza de que a sua obrigação de ser feliz também passa por saber, e ela sabe, como se faz rir um homem.

Sai o urso e volto ao drama. J, um angolano amigo, era tão imaculadamente revolucionário que encandeava os olhos à revolução. A revolução prendeu-o e tratou-o com os horrores da cadeia de São Paulo em 1977: espancamentos e inenarráveis sevícias. Um banho de sangue e nojo. J nunca vergou. Com era das famílias, mandaram açucarados emissários ter com ele: “Komé J, tu és dos nos¬sos, assina só aí esse papel, para saí¬res”. É o assinas! Partiram-lhe os dentes, mas não lhe partiram a espinha. Aguentou anos. Por fim, libertaram-no. Ao sol ardente de Luanda, reencontrou os das falas mansas na cadeia. Diziam-lhe: “Komé J, tás bom?”. Respondia-lhes com inefável candura: “Estou bom e… estou de acordo!” No sorriso de urso que arrancava a cada um, estava a redenção dele. Ninguém se comove se não sorrir ao mesmo tempo.

Este artigo foi originalmente publicado no semanário português O Expresso.

msfonseca@netcabo.pt

Manuel S. Fonseca escreve de acordo com a antiga ortografia

Good Will Hunting, no Brasil Gênio Indomável; Adjustment Bureau, no Brasil Os Agentes do Destino. CGTP, Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal.

Na foto, Matt Damon entre Minnie Driver e Ben Affleck.

 

 

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *