Denise

Denise poderia ser personagem de um filme de Claude Sautet. Claude Sautet criava personagens que “mascaravam em grupo sua solidão” – e a frase vai entre aspas porque é uma citação; eu não seria capaz de criá-la.

Poderia ser um personagem, ou poderia também ser uma atriz dos filmes de Sautet, um cineasta que gostava de atores belos. Denise era uma bela mulher, nos dois sentidos, o mais estrito, o da beleza mais óbvia, e o mais importante, da pessoa interessante, inteligente, boa. Uma mulher bela, com aqueles lindos olhos claros, escondidos atrás dos óculos de lentes grossas, e um corpo esguio, perfeito, resultado de sorte, de DNA, nunca de grande esforço, de ginástica, malhação, que a isso ela jamais se submeteria na vida. Era sedentária, e fumava muito.

Era, sobretudo, uma pessoa que parecia solitária, como alguns dos personagens de Sautet.

Mascarava em grupo sua solidão: me falava de encontros freqüentes, quase rigorosamente mensais, com antigas amigas, Valéria, Lenita, Silvinha. Imagino que, nesses encontros, não abrisse a alma, como boa parte das mulheres felizmente faz – uma das muitas qualidades que as mulheres têm que a nós, homens, foi negada.

Posso estar enganado, não a conheci bem (alguém a terá conhecido bem?), mas acho que Denise, ao contrário de muitas mulheres, não era de abrir a alma nas conversas em grupo. Tinha esse defeito masculino de mascarar em grupo a solidão.

Falava, sim, da sua vida, dos problemas com os filhos, a filha que teve jovem demais e era muito distante dela, o filho que teve já na maturidade e que na infância tinha aquela marca que algumas pessoas carregam, de imensa, inata carência. Me falava um pouco disso, nos meses em que convivimos no mesão do Estadão, aí por 2005, 2006, e nas escapadas para o fumódromo, quando ainda havia fumódromos em São Paulo. Falava, mas falava pouco – não chegava propriamente a se abrir, se mostrar. Era reservada. Mantinha o interlocutor à distância, uma distância que talvez parecesse a ela segura.

Talvez tivesse medo das proximidades.

Imagino que com as outras pessoas ela não fosse muito diferente do que era comigo.

Nessa época em que convivi mais com ela, era o que antes se chamava de copydesk, e depois virou fechador (o que, apenas pelas palavras, já demonstra como decaiu, nos jornais, a função da pessoa que conserta o texto dos outros, que dá a forma final dos textos que aparecerão impressos na manhã seguinte) da editoria de Economia. Tinha ido parar na Economia por acaso, por falta de oportunidade em outro lugar. Não gostava de Economia, não estava nada satisfeita com o que fazia. A praia de Denise era outra: no Jornal da Tarde, havia sido durante muitos anos copy da Variedades. Era, no entanto, competente, poderia ser copydesk, redatora, fechadora de qualquer coisa, e tinha virado fechadora de Economia porque a Economia precisava. Não gostava do que fazia, achava tudo aquilo muito chato, mas procurava fazer bem feito o que tinha que fazer, e fazia.

Havia rodízios de pessoas das editorias para fechar a primeira página nos plantões, ou nas férias dos titulares, e a Economia sempre costumava oferecer Denise à primeira página. Ela dizia que isso se devia ao fato de as pessoas da Economia a acharem dispensável. Foi exatamente nessa época que eu, trabalhando no mesão junto das pessoas encarregadas da primeira página, mais me aproximei dela.

Embora “aproximar” seja uma expressão errada. Denise não deixava ninguém realmente se aproximar dela.

E aí me lembro da canção que Paul Simon escreveu quando era muito jovem, e eu mais ainda – “I am a rock”. Para não sofrer, o narrador da canção de Paul Simon se transformou numa pedra – “e uma pedra não sente dor”.

A lembrança que tenho de Denise Akstein é semelhante à do narrador da canção de Paul Simon: uma pessoa que, para não sofrer, se transformou em uma pedra.

A morte de Denise me assustou muito.

Não soube da doença. Falamos – por e-mail e por telefone – até o que me parece ser muito recentemente. Sandro diz que a doença foi diagnosticada em dezembro passado. Estranho, porque na minha cabeça parece que Denise e eu conversamos em dezembro, e ela não falou nada a respeito da doença.

Estranho nada. Talvez tenhamos de fato conversado em dezembro, e ela não tenha dito coisa alguma sobre a doença. Ela era assim: fechada, até para as pessoas, como eu, para quem parecia se abrir.

Julho de 2011

 

7 Comentários para “Denise”

  1. Texto emocionante por vários motivos, Sérgio.
    Parabéns.
    Abraços
    Rodrigo Garcia

  2. Linda homenagem Servaz. E um texto brilhante, como sempre. Eu também fui surpreendida com a morte da Denise. Fiquei sabendo ontem, e fazia anos que não falava com ela. Mas ela era uma querida!

  3. Só conheci Denise dos corredores e do fumódromo, mas a vi tão bem retratada aqui, a exata imagem que tinha dela, que me emocionei. Lindo texto.

  4. Servaz, belíssimo texto. Não consigo me lembrar da Denise, mas você me fincou a convicção de que ela era uma pessoa muito interessante, digna de ser investigada e descrita por quem possui a arte (e não parou de aperfeiçoar-se) de bem escrever. Parabéns e um abraço, meu caro.

  5. Não conheço o autor, mas reconheci a Denise em cada linha do texto. Que saudades.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *