Aprendendo com Clara

Clara, em seu universo de carinho, diz que o vovô é maior que o mundo. Poesia pura que me enche de orgulho. Não é mais o coração do Drummond que é maior que o mundo. E a declaração vem de uma pessoa insuspeita.

Olho para seu rosto de menina feliz, quase aos cinco anos, e me lembro que foi a partir dessa época de minha infância que alguma recordação me chega. Ás vezes são nuvens, imagens difusas, acontecimentos percebidos aos pedaços, quadrinhos que não se completam.

Eu vivia em Caldas, onde nasci e meu pai era juiz. Sombras de alguém correndo atrás de mim, um velho assustador, e eu devo ter me safado, pois, se minhas pernas eram curtas, as dele cambaleavam. Nada ocorreu. Consegui subir a enorme escada de quatro degraus e entrei em casa. Isso se confunde com um fato do qual não sei se me recordo ou me contaram mais tarde. Eu teria me escondido dentro de um armário e comido um pedação de queijo. Aberta a porta do armário, depois de muita procura, coitada da minha mãe, de todas as mães, lá estava eu quase explodindo, no ponto exato de vomitar tudo o que engolira. Como pus para fora o que não comera, quando meu irmão mais velho descarregou boca afora todo o seu espanto de ter assistido ao atropelamento e morte de um amigo que caíra da moto na frente de um caminhão.

Dos meus primeiros cinco anos eu me lembro muito pouco, apenas vultos. Existem as fotografias da família – pai, mãe e irmãos, eu de pé machucado e cabelos cacheados e louros ( isso também porque me dizem, pois as fotos são em preto e branco).

Há uma neblina nas minhas recordações. Assim como haverá para a Clara, em relação à nossa cumplicidade, se eu não fizer o favor de viver muito ainda, com saúde e disposição para as nossas brincadeiras. O que eu recolho desses quase cinco anos da menina querida é que eles completam os que eu vivi e evaporaram. Acompanhando com atenção a trajetória dela, é como se eu fosse incorporando à minha existência aquele buraco de esquecimento que existe em minha história. Tomo emprestado, mas devolvo, só para me imaginar respirando meus ares de menino.

É a segunda chance que a vida me dá. Quando minhas filhas nasceram e as vi crescer, eu acompanhei passo a passo, dia a dia, o desabrochar e o florescer das minhas flores. Aprendi mais que ensinei e tive consciência disso desde o começo. Meu trabalho foi se tornando cada vez mais caseiro, sem horários fixos, para que eu pudesse estar mais tempo ao lado delas.

Conviver é jogar luz sobre a existência. Quem me ensinou isso foram filhas, filho, neta, mulher, parentes e os bons amigos que eu fui fazendo enquanto a terra gira em torno do sol e de si mesma.

Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas, em meio de 2011.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *