Um festival de regressão

Estamos numa guerra cambial, o real nunca esteve tão valorizado. Os nossos produtos de exportação estão perdendo a competitividade e a balança comercial poderá sofrer um abalo a partir do próximo ano. O próximo governo, provavelmente, vai ter que fazer um forte ajuste fiscal para equilibrar as contas públicas, abaladas pela gastança desenfreada que o governo patrocinou durante o ano eleitoral. Precisaremos discutir seriamente a questão do modelo de exploração do pré-sal, para que o País não corra o risco de desperdiçar o potencial das jazidas profundas de petróleo e consiga tirar delas o melhor proveito possível, sem provocar riscos de um abalo ambiental como o que ocorreu recentemente no Caribe.

Alguém ouviu, da parte dos candidatos a presidente da República, qualquer espécie de discussão séria sobre esses temas durante a campanha eleitoral? Alguém ouviu algum jornalista levantando esses temas em qualquer uma das centenas de debates que entediaram os eleitores nas monótonas noites que os canais de televisão dedicaram, por dever de ofício, ao bate-boca estéril entre os candidatos?

Nada disso.

As últimas semanas foram ocupadas em descobrir quem é que sabe rezar a Ave Maria com mais devoção, ou quem é que sabe fazer o sinal da cruz com mais desembaraço. Ou em descobrir se a violação do sigilo fiscal de um candidato e de seus familiares ou partidários foi fogo amigo ou inimigo. Ou em saber se o aborto é um ato de livre arbítrio, uma questão de saúde pública ou um pecado sem remissão.

De quarta-feira para cá, o grande tema da campanha eleitoral foi saber se a horda de cafajestes que interrompeu a caminhada do candidato de oposição à presidência da República num subúrbio do Rio de Janeiro atirou na cabeça dele uma bolota de papel ou um projétil quase mortal. O presidente da República, com seu elevado espírito cívico, não deixou escapar a oportunidade de contemplar-nos com mais uma de suas profundas metáforas futebolísticas, atribuindo ao candidato de oposição as mesmas artes do desempenho cênico do lendário Rojas, o goleiro chileno que passou para a história por simular, em pleno Maracanã, ter sido atingido por um rojão mal disparado durante a disputa de um jogo eliminatório para a Copa do Mundo.

Não foi uma agressão, foi uma mentira descarada, disse o presidente, que já tinha demonizado a oposição política a seu governo, acusando-a de ser “a turma do contra”, atiçando o ódio de suas hordas militantes, e desconhecendo o fato de que, com bolotas de papel ou não, não é ato civilizado irromper nas manifestações de adversários políticos para provocar tumultos. Os fascistas italianos faziam isso com “manganelli” (porretes) e óleo de rícino, que enfiavam goela abaixo dos adversários de Mussolini, o que era uma forma peculiar e quase folclórica de fidelidade fanática a um regime político, até que se transformasse em violência criminosa com o assassinato do líder socialista Giacomo Mateotti.

Estamos a uma semana do encerramento de uma campanha política que poderia ser histórica no sentido da reafirmação da vitalidade da jovem democracia brasileira, mas que caminha para se transformar num triste episódio de vacuidade política, de regressão ideológica e de primitivismo civilizatório.

Este artigo foi originalmente publicado no Blog do Noblat, em 22/10/2010.

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