Um cinéfilo na selva

O que se fala, aqui na Ilha de Cotijuba, é que com a próxima lua se instala, de vez, a estação das chuvas, o inverno amazônico. Sinais disso há, e estão ali mesmo, nas nuvens escuras que cobrem a Baía de Marajó. Do ponto em que ora me hospedo, posso contar as trovoadas que estão desabando ao longe, no espaço aberto, e sei que por mais alguns dias elas permanecerão assim, esparsas, para se unirem lá pelo fim do mês. Então o cinza se generalizará, o verde da floresta ficará mais escuro e, em algumas ocasiões, se terá idéia de que, como em Macondo, choverá, ininterruptamente, durante cem dias e cem noites.

Ao contrário de julho, que é o pique do verão, nenhuma andorinha pia no céu. E este clima, esta véspera de estação, começa a atuar em tudo que nos cerca. As calmarias, por exemplo, tão raras na maioria dos meses, agora ocorrem com certa freqüência. Durante horas você não percebe um movimento nas folhas, e olha que o que mais há, aqui, são árvores. De repente, o vento. As águas da baía se ouriçam, as gaivotas param entre a linha da arrebentação e a areia das praias, espalhando-se então, ao largo, as famosas ondinhas baixas que se assemelham a carneirinhos pastando numa planície imensa. Acabam por se perder no horizonte para além, muito além do rumo do mar.

Estou contando isso porque, para mim, há uma constante renovação de encantamentos sempre que estou em alguma ilha na foz do Rio Amazonas. Nesta de onde ora escrevo, apesar de termos uma parte ralamente habitada, na outra, quase deserta, é que vivem os nativos, em geral pescadores. Nas enseadas pequenas, breves, os barquinhos ancoram nos fins de tarde, e há, em volta, casas, umas duas bibocas com uma cervejinha gelada, e mulheres e homens queimados de sol que nos chamam de “parente”.

Confesso, com indisfarçável orgulho, que sou razoavelmente conhecido por aqui. Tenho amigos que sempre me preparam uma caldeirada, ou oferecem um aperitivo. Mas, sobretudo, me contam histórias. Como estas das primeiras noites que antecedem o grande e úmido inverno equatorial.

O velho Miguel Araken, ontem, enfrentou águas brabíssimas na baía.

– O mundo – faz um gesto – parece que ia acabar.

– E o que você fez?

– Segurei o leme e a vela. Segurei para o barco não virar.

– Rezou?

– Não, rezei antes de ir. Na hora do perigo não dá para rezar, pois distrai…

Curiosamente nunca, jamais, em tempo algum ouvi por aqui as famosas “histórias de pescadores”. Dificilmente um desses homens dimensiona o tamanho do peixe que pescou, e olha que ali mesmo, naquelas areias, já vi piraíbas com algo como 100 quilos.

No que a noite cresce, com parcos ventos, pios de aves noturnas e alguns presságios, percebo, noto pela primeira vez, que raramente vi, na colônia, muitos aparelhos de rádio, ao contrário do que acontece mais para o interior da Amazônia. Tevê nem poderia ter, pois não há energia; as geladeiras são movidas a gás.

Assim, no simples papo ante a escuridão, seguro no braço do velho Miguel Araken e pergunto, num jorro:

– Escuta, alguma vez, na vida, tu já viste cinema?

– Já – ele respondeu, com segurança.

Contive o espanto e fui tateando:

– Já viste mesmo, Araken?

– Já, em Belém.

– E eu pensava que cinema, pra ti, era novidade.

Antes que o pescador, homem com mais de setenta, fosse em frente, corto:

– E o filme? Como foi o filme que viste?

– O filme? Olha, faz tempo, muito tempo, eu era garoto. Só que nunca esqueci. Foi no Cine Olímpia.

– E como era?

– Bem – ele olha para o alto – foi um negócio muito bonito. Tinha uma mulher, branca, alva, que usava chapéu. E um homem com uma capa, como se fosse a batina de um padre. Mas não era batina preta, era branca.

Nesse instante eu acabara de ser picado pela curiosidade de saber que fita o bom homem assistira.

– OK – murmuro – tinha uma mulher de chapéu e um homem com capa.

– Eles falavam, falavam baixinho num lugar aberto, falavam numa língua que a gente não entendia nada. Em volta deles tinha umas fumaças, como as neblinas que caem de manhã aqui, no inverno, sobre o rio. O homem com a capa falava com a mulher. Ele também usava chapéu. Depois a dona foi embora, num avião.

Rápido, dei um salto do tronco em que estava sentado, sob a copa de um abacateiro. Pois eu acabava de descobrir que o pescador Miguel Araken, solitário habitante de uma das inúmeras ilhas na foz do Rio Amazonas, assistiu, em algum tempo da sua vida, uma das fitas prediletas de dez entre dez cinéfilos, Casablanca. Por Santa Rita do Passa Quatro, o homem das águas, como eu, também sucumbiu aos encantos de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart…

Esta crônica foi originalmente publicada no Correio Popular

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