Meu pai, a vida inteira mineiro e fazendeiro, morreu sem conhecer o mar. Não que não quisesse.
As vacas não deixavam. Nem os bois, cavalos, cachorros. Galos, galinhas, pintinhos.
Secas, chuvas, geadas. Enchentes, ventanias, incêndios. Plantações, colheitas.
Empregados, casas de empregados. Filhos, colégios de filhos. Roupas, sapatos, cadernos, canetas, tinteiros, mata-borrões, lápis, borrachas. Estojos, réguas, compassos, esquadros, transferidores. Livros, livros.
Viagens, só por ali mesmo. A cavalo, de trem. São João del-Rei, Lavras, São Tiago. Estação de Nazareno, Ibituruna, Coqueiros, algumas outras, não me lembro mais.
Não me lembro se queria conhecer o mar, quando, aos quinze anos, ônibus, nem trem nem cavalo, levada pelas freiras, saí do colégio, em São João del-Rei, e fui parar no Rio de Janeiro.
Mês de julho, férias, Congresso Eucarístico Internacional. Aterro do Flamengo, 1955. Tudo tomado do mar, em nome de Deus.
Obedientes e pacíficas, freiras à direita e à esquerda, rezávamos, entoávamos o hino oficial do Congresso – “a nós descei, divina luz”- descobríamos habitantes de todas as partes do mundo, religiosos, religiosas, estudantes, crianças.
Procissões, velas acesas, imagens, santos, santas, andores, altares, missas, cálices, vinhos, pães, hóstias consagradas.
Pois, naquelas duas semanas eucaristicamente cariocas, entre um sinal da cruz e um Pai Nosso – Padre Nosso –, entre uma visita ao Palácio do Catete e outra ao Cristo Redentor, demos de cara com o mar.
Livres de sapatos e meias, saias azuis – de pregas – levantadas até o sagrado limite da decência, molhamos os pés, respingamos os joelhos. Só isso, isso tudo. Se a água tinha mesmo gosto de sal, meu pai – certamente pensando em mim, naquele nosso fim de mundo mineiro – jamais saberia. Além de apressadas, as freiras morriam de medo de que algum garoto nos olhasse mais demoradamente. Ou vice-versa.
Voltei ao Rio umas quatro vezes, se tanto. Em 1971, final do Primeiro Campeonato Brasileiro, Galo contra Botafogo. O Telê era o técnico, o Galo foi campeão, tenho certeza de que o Maracanã é à prova de emoções que não se descrevem. Ah, à noite, Paulinho da Viola cantando, como podia caber tanta coisa bonita em um dia só?
Anos depois, uma Bienal do Livro. Não vi uma única freira. O Maracanã, só de longe.
Mais anos depois, volta de Cabo Frio, férias, passada rápida com as crianças. Um dia, dois. Só isso, isso tudo.
E o enterro do escritor Adonias Filho, cemitério São João Batista. Muita gente conhecida descansando lá. Nara Leão me trouxe de volta, baixinho, com saudade, “se alguém perguntar por mim”…
Hoje, sei lá por que, voltei a viver essas coisas. Esses tempos.
Voltei a pensar em meu pai, que queria conhecer o mar e assistir, ao menos uma vez, a uma tourada em Madri.
Difícil alguma freira me levar até lá.
As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial).