A Rede Globo está prestando um serviço inestimável à cultura brasileira. A minissérie Dalva e Herivelto, Uma Canção de Amor, pelo que mostrou nos dois primeiros episódios (exibidos nos dias 4 e 5 de janeiro), é um monumento.
É uma produção riquíssima, requintadíssima. Uma reconstituição de época que não fica a dever nada às produções mais bem cuidadas de Hollywood, do cinema inglês, do cinema francês. Uma direção de arte que, ouso dizer, Patrizia Von Brandestein, uma feiticeira na reconstituição de épocas, assinaria embaixo com o maior orgulho.
Mas, sobretudo, a minissérie dirigida por Dennis Carvalho expõe à metade da população brasileira que vê a Globo uma belíssima amostra do melhor produto deste país, sua maior arte, seu mais brilhante diamante, sua melhor commodity de exportação – a música popular.
Para um país sem memória, eternamente envergonhado de si mesmo, que baba com tudo que é importado, botar no ar na televisão de maior ibope Dalva de Oliveira e Herivelto Martins é um feito histórico, uma ação de impacto cultural cujo alcance total é difícil de ser medido.
Já dá para garantir, no entanto, que dezenas, centenas de milhares de pessoas vão ficar conhecendo um pouco da música brasileira feita nos anos 30, 40 e 50. Orlando Silva, Ataulfo Alves, Benedito Lacerda, Chico Alves, Linda Batista, Mário Lago, Pixinguinha, para citar só alguns dos personagens que aparecem ou são citados na história. E só por isso já seria de se aplaudir de pé, como na ópera, essa minissérie, a autora Maria Adelaide Amaral, o diretor Dennis Carvalho, os atores Adriana Esteves e Fábio Assunção e todos os demais, a gigantesca equipe mobilizada para a produção, e a emissora responsável por tudo, a Rede Globo.
O que essa minissérie da Rede Globo está fazendo pela cultura deste país é muito mais do que tudo o que a imensa, gigantesca, paquidérmica, caríssima estrutura de mídia governamental poderia fazer em outros 500 anos de história.
A Globo que o lulismo execra e ao mesmo tempo corteja
Rede Globo de Televisão. Organizações Globo. Sim, sim, os Marinhos. A grande mídia, a mídia da elite, a mídia dos donos do poder, reacionária, direitista, antiprogressista, antipopular – segundo nos dizem os petralhas, no seu esquerdoidismo infanto-juvenil.
A Rede Globo que procurou ignorar as diretas-já, que colocou o primeiro comício pelas diretas-já na Praça da Sé, no dia 25 de janeiro de 1984, entre as comemorações pelo aniversário de São Paulo. A Rede Globo que editou maldosamente o debate entre Lula e Collor no segundo turno da primeira eleição direta para presidente depois da ditadura, para prejudicar o candidato de esquerda e favorecer o candidato da direita, em 1989, uns poucos anos antes que os dois, Lula e Collor, virassem bons amigos e companheiros.
A mesma Rede Globo que Lula escolheria para dar sua primeira longa entrevista como presidente finalmente eleito, após três derrotas sucessivas. A mesma Rede Globo que Lula escolheria para explicar, numa entrevista fajuta, porcamente montada em Paris, após o escândalo do mensalão, que caixa 2 todo mundo faz, então por que tanta gritaria?
A mesma Rede Globo que os petralhas execram e que os asseclas de Lula cortejam nas horas em que precisam dela.
Mil vezes a Globo que um mundo só de Pravdas e Granmas
A mesma Rede Globo que já havia nos brindado com belas minisséries ou especiais sobre Maísa, Dolores Duran, Nara Leão.
É assim mesmo: assim como tem pecados pesados na sua história, a Globo tem momentos de brilho, como as minisséries sobre essas cantoras, como a minissérie de agora sobre Dalva e Herivelto. Os petralhas jamais vão entender isso, mas ainda bem que a Rede Globo existe. Quando comentei sobre outra bela obra, Intrigas de Estado/State of Play, um filme que demonstra como os grandes jornais são tão necessários quanto “el aire que exigimos trece vezes por minuto”, fiz uma frase boa, que me permito repetir: Mil vezes ter que conviver com o reacionarismo idiota, cego e pretensioso de uma Veja e com o poder acachapante de uma Rede Globo do que viver num mundo de Pravdas e Granmas.
Nossas belas canções, de geração em geração
Feito o devido elogio à Globo e a Dalva e Herivelto, Uma Canção de Amor, e depois do jus sperneandi, quero voltar a falar do melhor produto do Brasil, sua maior arte, seu mais brilhante diamante, a música popular.
Não venho de uma família especialmente musical. Minha mãe não me passou uma herança rica de conhecimentos sobre a música que se fazia antes que eu começasse a entender o mundo. Na verdade, só consigo me lembrar da paixão dela por Carlos Galhardo – mais nada. Meus primeiros ídolos, no início dos anos 60, foram os grandes nomes do revival do folk americano – Joan Baez, Peter, Paul and Mary, e logo depois Bob Dylan e Beatles. Em seguida vieram Nara Leão e os garotos que estavam começando a carreira, aquela coisa maluca de reunir numa só geração (ou quase isso) Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Maria Bethânia, Gal Costa, Elis Regina, Roberto e Erasmo Carlos, Paulinho da Viola, Geraldo Vandré, Jorge Ben, Raul Seixas, Martinho da Vila, Sérgio Ricardo, Sidney Miller, logo depois Milton Nascimento.
Foi só depois dos 15, 16, 17, 18 anos, que fui voltando para trás, e conhecendo a bossa nova, Tom Jobim, João Gilberto, Vinicius de Moraes, e tudo o que veio antes dela: Assis Valente, Ataulfo Alves, Braguinha, Custódio Mesquita, Dorival Caymmi, Geraldo Pereira, Haroldo Lobo, Herivelto Martins, Ismael Silva, Joubert de Carvalho, Lamartine Babo, Luiz Gonzaga, Lupicínio Rodrigues, Monsueto Menezes, Noel Rosa, Pixinguinha, Sinhô. Por ter chegado à adolescência depois da bossa nova, levei muito tempo para conhecer e admirar os cantores e cantoras da era do rádio, Chico Alves, Orlando Dias, Dalva de Oliveira, Marlene.
Talvez isso explique, ao menos em parte, por que sou tão pré-antigo, e, nas buscas por músicas desconhecidas, tenho a tendência sempre de procurar, em vez do sucesso do momento, as coisas mais velhas, os ídolos dos meus ídolos, os lá de trás no tempo.
Suely, ex-mulher e amiga, mãe de Fernanda, minha filha única e meu maior orgulho, teve muito mais sorte que eu: veio ao mundo e cresceu ao som desse povo todo, que sua mãe, Dona Diva – uma fã apaixonada de Dalva de Oliveira –, escutava direto e reto no rádio. Suely tem uma memória musical fantástica, conhece quase tudo dos grandes compositores e cantores da era do rádio. (Conseguimos passar para Fernanda a paixão por música de uma maneira geral, e por muitos dos nossos ídolos em particular. Algumas coisas, naturalmente, não foram possíveis – não tem jeito, por exemplo, de convencer Fernanda de que Roberto Carlos não é brega.)
Assim como Suely (e assim também, por que não lembrar isso? como Caetano e Bethânia), Mary teve sorte – e grande. Nasceu e cresceu ouvindo música direto e reto – a que tocava no rádio e a que Dona Lúcia, mãe dela, cantava o tempo todo. Dona Lúcia, ela também por sorte filha de um pai extremamente musical, tem uma bela voz, afinação perfeita, memória extraordinária para as letras e as melodias. Por coincidência, Dona Lúcia estava nos visitando nos dois primeiros dias de exibição de Dalva e Herivelto. Começou a ler antes de mim o livro que a outra filha, Mílcia, me mandou de presente de Natal, a história de Dalva e Herivelto contada por Pery Ribeiro e Ana Duarte. Catei os três LPs de Dalva que tenho e botei no toca-discos, como aperitivo, antes de vermos o primeiro capítulo. Márcio, irmão da Mary, que como eu não ouvia Dalva fazia muito tempo, ficou impressionado: “Mas a senhora canta igualzinho a ela”. “Não é bem igualzinho”, disse Dona Lúcia; “mas é muito parecido, sim, porque eu aprendi a cantar com ela.”
Merecemos um destino melhor
Mereceria ser mais feliz do que é um país com tanta riqueza musical.
Em 2009, a partir de um belo documentário, Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei, dois livros, shows tributos, e discos relançados, boa parte do país reencontrou Wilson Simonal. Neste comecinho de 2010, essa minissérie vai fazer boa parte do país reencontrar Dalva, Herivelto, e quem sabe, por tabela, outros compositores e cantores dos anos 30 e 40.
E tudo partindo da iniciativa privada, de gente que faz, que empreende. Sem precisar de máquina governamental, hoje toda ela pilhada, tomada de assalto pelo lulismo, esse triste, melancólico, ameaçador fenômeno que cresce a partir de uma conjunção de subdesenvolvimento, miséria, falta de informação, esperteza, safadeza e farta distribuição de emprego para os apaniguados.
Um país com tamanha riqueza musical mereceria um destino melhor.
São Paulo, 4 e 6 de janeiro de 2010
Desta vez, acho até que o chute na barraca foi por demais elegante. Afinal, como você bem diz: “Um país com tamanha riqueza musical mereceria um destino melhor.”
Sérgio,
os atores são convincentes, a direção é cuidadosa, a história é quase inacrediltável, e seu texto é entusiasmante.
Ah, e viva a memória, seja de que ordem for!
Beijo
Vivina.
A Globo que se presta a muito mais, muito mais do que você disse Sérgio.
Um país sem memória e envergonhado desde há mais tempo do que vivemos você e eu.Cheio de grandes críticos e muito poucos com disposição para lavar roupas. Quase como a reação de Herivelto a aparência de Dalva, quando segundo ele ela já não seria mais uma lavadeira e agora era uma estrela. A constante é sempre o fato que ao trocar de lado os críticos abraçam as velhas práticas, inimigos dão as mãos. Tanto que os mais antigos hão de lembrar-se de muitos nomes na nossa política de hoje nos tempos de então. Por quê?
Seria por que nossos governantes se sucedem e alimentam essa dependência de salvadores da pátria? Aliás, em um folhetim na mesma Globo, Lima Duarte interpretou por longos sete meses um salvador. Caracterizado como quem na época salvador e que hoje não passa de grande algoz.
Ainda é a chuva, que não deixava as roupas de Dalva secarem, que mostra onde realmente estamos.
Caro Sérgio
Poxa vida, hein, assim não dá! Toda vez que venho aqui é a mesma coisa…
Primeiro, foi aquele relato emocionante sobre o grande Wilson Simonal. Agora, você vem com essa belíssima homenagem à diva Dalva de Oliveira.
Se continuar assim, serei obrigada a definir essa página como minha homepage.
Pronto, falei.
Tua filha é um gênio,Roberto carlos não representa a MPB.Apesar que brega pra mim,só dupla sertaneja.