Nos dias em que se lembraram a execução de Tiradentes, os cinqüenta anos de Brasília e os vinte e cinco da morte de Tancredo Neves, uns escritos guardados me levaram ao reencontro de mais uma personagem dessa época.
Quando, em 1985, o presidente Tancredo Neves, sem aviso prévio, deixou o país se sentindo órfão, ouvi o psicanalista e escritor Hélio Pelegrino afirmar:
— Ninguém corre atrás da morte.
Olhos úmidos fixos na televisão, me perguntei atrás de quê, então, corria aquele povo todo, de aeroporto em aeroporto, de cidade em cidade. De rua em rua. Esquina em esquina. Casa em casa.
Minhas indagações, pouco a pouco acomodadas nas gavetas do esquecimento, voltaram há poucos dias, quando o compositor Gonzaguinha, sem aviso prévio, silenciou tantos e tão elaborados acordes.
Olhos úmidos fixos na televisão, me perguntei o que fazia o povo de Belo Horizonte cantar, no longo trajeto entre o Palácio das Artes e o cemitério do Parque da Colina.
Saídas – quem sabe? – das gavetas desordenadas da memória, algumas respostas começaram – timidamente – a se insinuar.
Se é – deve ser – verdade que ninguém corre atrás da morte, talvez aquela multidão sem fim seguisse o presidente não apenas pra se despedir, mas sobretudo para assegurar-lhe que os sonhos continuavam. O presidente das diretas não sonhava ser seguido? Pois o povo, fiel, seguia seguindo-o. De aeroporto em aeroporto. Casa em casa.
Se também é – deve ser – verdade que a morte não faz cantar, talvez aquela outra multidão sem fim – ou seria a mesma, saída das gavetas da dor? – seguisse o compositor não apenas para se despedir, mas, sobretudo, para se irmanar. O compositor dos protestos não sonhava ser ouvido? Pois o povo, fiel, insistindo em suas harmonias e em seus refrões, seguia o ídolo como se o estivesse ouvindo. Não pela última, mas por mais uma vez:
— Quando eu soltar a minha voz, por favor, entenda.
Olhos surpresos fixos na televisão, aderi, cantando baixinho.
— Ao som desse bolero, vida, vamos nós, eu busquei a palavra mais certa pra ver se um dia descanso feliz, se o sol molhar o meu sorriso, não se espante, cante.
Cantei algumas vezes. Baixinho.
Ao final, o Palácio das Artes se distanciando, o Parque da Colina se aproximando, o carro do Corpo de Bombeiros deixando à mostra a bandeira de Minas, a do Cruzeiro – ninguém é perfeito –, me lembrei de uma entrevista em que lhe pediram que se definisse:
— Eu sou um simples Gonzaguinha. Filho do Gonzagão.
12/5/1991
As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.