Passados e antepassados

Criança de fazenda, cresci em meio a muito boi e muita vaca. Alguns cavalos. Cachorros, gatos, galinhas. Gente, muito pouca.

Cercados por estradas de terra e mata-burros de madeira, a duas léguas da estação de trem mais próxima – Estação de Nazareno, na margem de lá do Rio das Mortes –, sem carro e sem barco, quase não saíamos daquele sossego.

As raras visitas amarravam o cavalo no mourão da cerca, debaixo da mangueira, e a demora era sempre pequena.

A exceção tinha o nome de Sebastião Garcia.

Magro, falante, rosto comprido, pernas também, tomava do nosso café de domingo a domingo.

Empregado da fazenda, pai de muitas filhas e um único filho, amigo de meio mundo, comprador e vendedor de aves e ovos, freqüentador de todas as casas, treinara pacientemente, ao longo da vida, uns acordes de tosse, anúncio de sua chegada. Verdadeira campainha.

— Se, por acaso, tiver alguém falando mal de mim, dá tempo de parar – dizia.

No aconchego do fogão de lenha sempre aceso, acomodava-se na cozinha espaçosa, ora em compridos bancos de madeira maciça, ora em altos tamboretes meio cambetas.

Enquanto esperava a caneca de café moído e coado na hora, picava o fumo de rolo com um canivete de lâminas gastas, a palha esticada e dobrada presa entre os dedos.

Profissional experiente, fabricava cada cigarro com cuidado. Depois, acendendo-os em um tição de lenha do fogão, e soprando-os, para que não se apagassem, saboreava-os, olhos nem abertos, nem fechados.

Se meu pai falava primeiro, Sebastião Garcia ouvia-o com atenção e respeito, quase carinho.

Chegada sua vez, discorria fluentemente sobre esse e outros mundos, essa e outras gentes. Passados e antepassados. Ressuscitava personagens, desenterrava histórias, evocava lembranças, fazia considerações. Concluía, filosofava. Sobretudo filosofava.

— A gente não pode mais ficar espantado com coisa nenhuma neste mundo, compadre – dizia.

Meu pai, cutucando a ponta do cigarro de palha com a unha do dedo anular, concordava. O mundo era tão surpreendente, tanta injustiça, tanta fome, tanta beleza, tanta contradição, não, ninguém podia mesmo se espantar com nada mais que acontecesse.

Hoje, segunda-feira qualquer, seis da tarde, tanto tempo depois, tantos cigarros inexistentes, hoje, na maior cidade do país, quero pedir licença aos dois, onde estiverem, pra discordar.

As luzes já se acenderam, eu acabo de olhar pela janela deste sexto andar onde trabalho, e o que me traz à lembrança as intermináveis conversas entre o antigo patrão e o velho empregado não são os seis cavalos que, passos lentos, fila indiana, percorrem, ruídos sincopados, o quarteirão da rua arborizada, lá em baixo. Muito menos os cavaleiros, policiais fortes, imponentes, nem parecendo cidadãos comuns.

Acontece que um deles, o último, tem um livro nas mãos. Aberto.

Último da fila, concede-se o privilégio de parar por instantes, debaixo de cada lâmpada.

Se eu não estivesse aqui, neste sexto andar, se descesse, corresse, talvez pudesse descobrir o nome do livro.

Não desço, não corro.

Penso em passados e antepassados.

Que o Sebastião Garcia e seu compadre, cigarros certamente apagados, me perdoem. A gente ainda pode se espantar com muita coisa nesse mundo, sim.

As crônicas escritas por Vivina de Assis Viana para o Estado de Minas, entre 1990 e 2000, estão sendo republicadas pelo site primeiroprograma.com.br, graças a um trabalho de garimpo feito por Leonel Prata, publicitário, jornalista, editor, roteirista e escritor, um dos autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada (MGuarnieri Editorial). Com a autorização de Vivina e de Leonel, estou aproveitando o trabalho dele e republicando também aqui os textos.

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