O Doutor do Baião

Na sala escura, imagens e sons da mais pura música popular brasileira. Fico pensando em como nossa memória cultural mais esquece do que lembra. Na tela assisto à biografia de um importante compositor e letrista que, ao lado de Luiz Gonzaga, fez dançar e cantar a nossa gente. O homem que engarrafava nuvens ou, mais ainda, que guardava um arco-íris em sua casa.

Humberto Teixeira e o parceiro Lua escreveram peças que emocionaram as multidões sem apelar para o gosto duvidoso. Suas canções eram belas e permanecem belas até hoje. O segredo era que conheciam a alma do povo e a expressavam de maneira lírica e natural, com talento. Nesta era de massificação em que hoje vivemos isso é algo cada vez mais raro. Muitos ainda tentam mas está cada vez mais difícil superar com música de qualidade a voracidade do mercado do fácil e do óbvio.

Devemos à filha de Humberto, a atriz Denise Dummont, a reconstituição da trajetória do cearense de Iguatu que, vindo para o Sudeste do país, foi buscar, junto com seu parceiro, na música do Nordeste, a inspiração para tornar popular um ritmo arrebatador. Eu estava nascendo quando eles gravaram seu primeiro baião. E o gênero foi sucesso em todo o Brasil durante muitos anos. O cearense reclamava, com razão, que os chamados historiadores da música popular ignoram a existência e a importância do que eles criaram: da fase do samba-canção pulam direto para a Bossa Nova, negando ao baião o lugar que ele merece em nossa história musical. Mas certamente não foi por acaso que João Gilberto compôs e gravou em seu primeiro disco a canção “Bim bom”: “é só isso o meu baião e não tem mais nada não, o meu coração só diz assim, bim bom, bim bom, bim bom”.

Ela talvez não ache isso, mas foi bom que Denise custasse a perceber o mérito da obra de seu pai, ela que, quando jovem na zona sul do Rio, gostava naturalmente dos sons que a juventude de seu tempo apreciava.

E foi bom, também, que seu projeto demorasse cerca de oito anos para ficar pronto. Percebe-se que o filme foi amadurecendo enquanto era concretizado.

Do sonho inicial ao planejamento, da imaginação e da idealização à execução; das entrevistas às pesquisas e documentos que iam aparecendo, o perfil paterno foi clareando. É emocionante participar com ela da aventura da filha em busca de entender e acolher o pai. Ela que pouco sabia dele conhece verdades, qualidades e defeitos. Percebe a dimensão do compositor e letrista que ele foi. E põe em foco a música de gigantes.

O painel que ela ajudou a produzir deve ter sido de grande valia para iluminar sua história pessoal. Para mim e meus companheiros de música, foi como testemunhar uma vida muito parecida com a nossa. O filme O homem que engarrafava nuvens é um hino de amor à nossa profissão.

 Esta crônica foi originalmente publicada no Estado de Minas.

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